O último telefonema da noite

O último telefonema da noite



Na minha contagem, fui solicitado a assinar diversos papéis, nuns coloquei meu nome, noutros me utilizei de pseudônimos. Fosse qual fosse, inteiro eu estava.

Para você, quis ser durante o período de cura o companheiro passivo, capaz de entender a sua doença o suficiente para saber que a não palavra seria mais confortável e, quando chegasse a hora de ver o panorama inteiro, o significado que saltaria à frente seria “elegância”. As frações pareceriam mal educadas, indignas de nota. Ademais, períodos de cura passam ao largo de estipulações.

Então me vi como a moeda que você acharia no chão, inesperada, viva (!!), o número que faltava para quitar a comanda.

Gostaria de ter sido a inspiração que vem do nada, redentora, rápida, o quadro mental na sua mente indicando a saída do desespero naquele dia.

Pensei por tantas horas, tantas horas, que toleraria qualquer menosprezo adicional porque naquele ponto minha mente colocava o passado no passado e tentava construir, num doloroso aqui e agora o passaporte para um futuro sossegado, tépido, divertido, amigo.

Em todo caso agradeço tudo e de antemão descarto a possibilidade culpar alguém. Muito embora por gentileza entenda: minha gratidão soa também como uma vazão e nesse desafogo me auto avalio. Interpretei errado os sinais. O que julguei doença não passava de uma rasteira planejada.

Muito obrigado por isso também. Caí e me levantei, não tão rápido como um ator de cinema, um herói, um exemplo a ser seguido.

Mas sei que fui, durante anos, a oração solitária que você precisava, a lágrima contida depois de um palavreado torpe, maldoso, desqualificado, que eu julgava característica da enfermidade, patologia que maltrata por desconhecer a nobreza de si e do outro.

Com uma respiração contida continuaria sendo a comida do cachorro, o pano de chão, o cinzeiro abarrotado, a conta atrasada, nunca a encomenda que chega de surpresa, alguém diria por engano, ou a canção da colheita. Porque quando se colhe, o canto enleva.

Talvez tenha sido a flor, aquela última do jardim, o ar ensolarado após o chuvaréu, o inseto inócuo que apenas atravessa o ambiente ou o vaso quase redondo, quase devido a uma lasca no barro trincado.

Não fui o passarinho piando de madrugada, por saber que não tens olhos para isso. Parti diluto, de fato fui convocado à, e a isso meu agradecimento é amplo - desta feita foi-lhe impossível fazer o de sempre: dar com uma mão e tirar com a outra.

Desta feita nem vazio e nem saudade. Aprendizado sim. Naquele ocaso estranho, em que demorei para entender o ocorrido, pude perceber que a minha fraqueza foi protagonista – do começo ao fim - de uma longa história sem frutos. Mas com enganos. E teatros. E jogos. E trapaças.

Depois de tudo, houvesse uma única conversa genuína e eu me prestaria, uma vez mais, para ser a grama a ser cortada, o prato de comida pela metade deixado de lado com fastio ou talvez a testemunha cotidiana e crédula da má vontade alheia.

Conversas sempre me seduziram. A derradeira foi muito ilustrativa.

Depois de tudo não me tornei forte, ou mais esperto ou calejado, experiente como queiram, nem mais cético ou cínico, ou quiçá mais aprumado.

Me tornei livre. Ainda está longe da liberdade plena, mas abocanha um átomo graúdo de pensamentos e posso granjear por ali pinçando elétrons novidadeiros.

De um par de anos para cá tenho olhado a minha vida, digo, a vida inteira, com um filtro tipo “Nosso Lar”. Excetuando os que esqueci por completo, todo(a) e qualquer um(a) sem exceção surgiu no caminho para me ajudar. É muito louco olhar por esse filtro. Assim, eu precisei de ajuda. E muita. Não acho tão difícil admitir isso. Seria pior se não me desse conta. A conclusão que eu chego é que nunca estive pronto para nada e que esses 54 anos não passaram de uma preparação. Os amores que eu vivi eu não vivi pois não sabia do que realmente se tratava. Estou apenas dando um exemplo. Existem vários.

Geneticamente, falando da minha árvore, nenhum de nós deu muito certo no grande esquema das coisas. Os que não adoeceram, partiram, e os remanescentes estão em vias de. Mas demos risadas e eventualmente encantamos. Que mais há para se levar? Culpas nunca foram boas companheiras de viagem.

Não teria sido para você um ramo de arruda na orelha ou uma tatuagem no ombro. De bom grado, entretanto, seria uma fotografia velha, encontrada por acaso dentro de um caderno, dessas fotografias cuja época evita um recado claro, ela paira, somente, e faz menos alarde do que um performista de rua tirando ases dos sapatos. Ases de espada.

Tampouco me converteria em pão, muito menos azeite, pois encontram-se em qualquer lugar, minha meta nesse intento vagueia entre o pueril descartável e o imprescindível relativo apenas porque o universo, naquele pequeno momento, assim o quis. Como a meiga e pegajosa lembrança do som de um pitoresco portão enferrujado.

Teria sido, sim, por muito tempo, o último telefonema da noite, aquele em que por instantes a mente se distrai com o bem querer familiar e a voz conhecida de quem se gosta acha graça nos cacoetes de sempre, ora queixas, bocejos, talvez um elogio venha à tona, esse telefonema equivale ao anjo com hora marcada, com ele as derrotas não são solitárias e as vitórias ficam mais doces, ali está embutida a mensagem de até breve e – mesmo à distância - o beijo antes de dormir.



(Imagem: Everett Shinn, Palhaço em lugares vazios, 1947)


 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 14/04/2014
Reeditado em 13/04/2021
Código do texto: T4768558
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