o barco-iris





     Rega as flores, rapariga, partido coração. Os cravos, alvos, dançam, ao chover imposto & impostor.

     Ela olha, mas nada vê, nem o que mira. Não pensa no que faz, nem em parar o que. Borboletas e abelhas aguardam para pousar. Mas nem o vento, de grosseria, ousa.

     Quando a água acaba, a moça se ereta. Quasestátua, o nada vislumbra. Tudo é vivo à sua volta: os passarinhos tentam convencê-la de tanto. Enfim, se espanta, quando se vê espantalho, e desprezado, pensa.

     Entra em casa e busca, no frio do chá, um sentido para o que há. Sente o mate matando as sedes, exceto a mais sedenta. Cospe como se quisesse cuspir-se no instante em que tocam a campainha. Cogita pôr o olho no mágico, mas já querendo abrir a porta.

     Tocam de novo, e ela, lentamente, se põe ao trinco. Ao abrir, só vê na rua um caminhão, aos trancos, e um guri subindo o barranco, enquanto um outro, troteando campanhias outras, ri, quase chorando.

     Ali ela fica, à porta, pose torta. Anoitecerá e ali estará. Alguém passará pela calçada e dirá um oi, retribuído por um levantar de sobrancelhas, que ficarão ali, levantadas.

     Quando lembrar do chá, vai requentá-lo, só para ver o vapor ascendendo pela cozinha. Vai folhear livros no sofá, até que novo dia chegará e regará de novo os cravos. Até tanto chover e trovejar. E chover e trovejar.

     Na volta do sol, só um sorriso e a certeza de que quem a deixou está por lhe esperar. O paraíso.

     Feliz do jardim, casulo da viuvinha.



 
5/11/2002
Lucas de Meira
Enviado por Lucas de Meira em 29/05/2014
Reeditado em 18/07/2016
Código do texto: T4824105
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