Hoje eu te vi

Hoje eu te vi. Foi tão normal, que em alguns minutos foi como se retrocedêssemos vários meses. Pouco tempo ali e eu já tinha a sensação de que, na verdade, eu nunca havia saído daquele quarto. Da forma mais natural, fui abandonando todos os esforços. Meu corpo e sua cama, como quaisquer duas coisas que se pertençam, foram se unindo sorridentes, felizes em recuperar o tempo que passou. Eu já sabia que quando entrasse lá, sentiria uma terrível falta de algo que nem eu saberia o quê, mas que ia machucar. Fui preparada, armada, protegida. Mas não aconteceu. Tudo era tão igual. Por algum tempo eu fiquei confusa. Não sabia exatamente se hoje era hoje ou um dia qualquer do passado. Não sabia se algo tinha mesmo mudado ou se eu estaria imaginando. Olhei pra você e, inevitavelmente, sorri. Claro que nada estava diferente. De onde eu tirara aquilo? Fui relaxando mais e mais, me sentindo muito em casa. A cama, o corpo... o corpo, a cama. Cada vez mais íntimos. Não tinha porque ser diferente, afinal. Hora de ir. Levantei e fui ao seu encontro. Ai, agora faltou sim alguma coisa. Você não me beijou. Por que faz isso? Bem, não tem importância. Abracei você. Batimentos cardíacos desregulados. Os seus? Não. Seu coração está tranquilo, sem motivos pra não estar. Então senti uma diferença. Cadê você no seu abraço? Me sinto sozinha aqui. Ai, tenho medo. Talvez eu estivesse certa no início, acho que alguma coisa mudou. Atravessei o seu portão e... meu Deus! Toda a minha vida ficou do outro lado. Não sou mais eu, só uma coisa oca, metros de pele escondendo um enorme vazio. E de onde parecia não ter nada, litros e litros de lágrima jorraram num rompante. O pranto se confundiu com a chuva que caía. Em um instante, já não sabia onde estavam os limites entre o lado de dentro e o de fora. Eu toda derramava. Pele, carne, espírito, sentimento, essência. Todas as instâncias do meu ser escorriam agora pelo asfalto, talvez na tentativa inútil de voltar pra perto de você. Horas depois, vou catando as partes espalhadas pelo chão, pra seguir, desacreditada, a infeliz verdade de que o mundo não pára pra eu me recompor.

(28 de Abril, 2011)

Marina Borges
Enviado por Marina Borges em 23/10/2014
Código do texto: T5009776
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