Metamorfose pela mutilação.

Hoje acordei com saudades de mim.

Mergulhado no rio, vejo que não há como reverter seu curso.

Escolhi ser cada parte do que sou,

Mas também amputei muitos membros.

Desde a nascente até o ponto onde me encontro, apertando as vistas para conseguir enxergar,

Posso distinguir, em meio a fúria da correnteza, meus renegados.

O primeiro é o coração, ainda envolto de sangue vivido e viscoso, palpita de longe.

Alguns metros depois vejo minhas cordas vocais, que ainda vibram num grito ininterrupto, mas não emitem som algum.

Não muitos metros a frente, estão meus ouvidos que expelem meus tímpanos como se ouvissem o mais agudo dos sons.

E aqui agora, diante de mim, sobre minhas mãos tremulas e enrugadas pela água, jaz meu grande e rosado cérebro, envolto num líquido de um amarelo discreto, mas não menos repulsivo.

Arranco meus olhos e os lanço para a margem.

Daqui de onde meus olhos estão posso contemplar minha obra, contemplar a mim mesmo como um outro que me tornei. Como num quadro, emoldurado pela densa e escura mata que envolve minhas íris, lá estou eu: de pé, nu e mutilado.

No lugar de meus olhos, dois ocos, vazios, negros e profundos. Meu rosto tingido de vermelho.

Abandono meu cérebro que logo é engolido pela água.

E caminho, cambaleante e vazio, na direção contrária à nascente, rumo ao lugar onde deságua o rio.

O mar.

E sigo sendo eu, um eu outro que escolhi ser.

Hoje acordei com saudades de mim. Aquele mim cheio daquele eu do começo do rio.