No funeral de James Joyce

“Do you want to cross?

There’s nothing in the way.”

(Ulisses, pagina 148)

As estrelas brilham com tanta intensidade...

Mas, elas me parecem tão distantes, impossível toca-las!

Nelas, vejo o passado, brilhando...

Lembro-me quando ainda corria atrás da primeira impressão.

Estou tão perto da exaustão, Srta. Weaver.

Sou criatura perdida em meio a um turbilhão...

De pensamentos... Zurique, Trieste e Paris.

Onde foi que eu deixei minha paz?

Não sei porque me excluíram daquele baile de formatura.

Em Dublin... Que caso doloroso!

Na minha própria cidade... Excluído!

“Deepbrow fundigs!”

Havia me preparado, havia me vestido para a ocasião.

E, depois de barrado, num surto de raiva, me despi...

Não havia convite no bolso do paletó!

E me despi de tudo, agora estou nu, estou só.

Depois do Nobel sei que irão querer tocar em minha mão de novo.

Mas, por enquanto, só querem tocar na de Bernard Shaw.

“Merda e cebola... Ajoelhado sobre a medula de meus ossos...”

Meu olho coça...

Lembro-me da chicotada que levei no domingo.

Acabara de sair da missa, atravessava a rua e a carroça vinha.

Queria muito perguntar ao senhor cocheiro...

Como pode acertar a ponta do chicote bem dentro do meu olho?

Ah, meu Deus, justo o direito... Era o que enxergava melhor!

Porque não fiquei mais alguns instantes dentro da igreja?

Porque disse tão rápido:

Amém!

Porque não demorei um pouco, ainda na calçada?

Porque não me entreti com os pombos da praça?

Enquanto penso no destino, meus dentes apodrecem.

Enquanto eles apodrecem a dor no ombro faz-se crônica.

Dói-me o ombro esquerdo, dói-me a alma direita.

Aguda dor, agudo pesar; pesa-me a vida!

O peso de uma vida de labor... Vida árdua de escritor!

Como dá trabalho ganhar a vida com literatura e poesia!

Ergo-me sob o peso de tantos livros na cabeça, tantos personagens para dar-lhes destinos distintos.

O futuro de Leopold Bloom¹ será reescrito novamente?

Novamente revisado quando James Joyce ressuscitar?

Não, Bloom quer ser esquecido!

E, Joyce, nunca ressuscitará!

Ele jaz no último conto de “Dublinenses”.

Enterrado ao lado do túmulo do velho Finnegans!

Ele está entre os mortos...

Sim, ele está entre os mortos...

Com a alma corroída pelo remorso!

Lucia² está com ele, descansa em paz, finalmente.

O pai não descansa...

Revê Ulisses, interpreta os sonhos de Nora, relê Ulisses...

Faz atualizações eternas da “história de um dia”.

Enfim Ulisses! Era 1922!

Enfim o reconhecimento?

Enfim... A censura!

Seu livro é proibido, erótico, libidinoso!

Mas, ainda é metódico.

E continua fazendo correções no capítulo “Sereias”.

Até quando Herr Joyce?

Trancado para sempre, em seu interior...

Faz correções página por página e exclama:

“Meu livro não é definitivo, nunca!”

Tantas e tantas reimpressões da obra.

Palavra por palavra...

Criadas, apagadas, copiadas, rabiscadas, exiladas.

Mas, nunca se esquece das outras tarefas do dia...

As 15h00 haverá “chrissomis wake” com Srta. Beach na Shakespeare & Company.

As 18h00 tem um encontro com Beckett no Temple.

E eles brindarão, gritarão e falarão sobre mundos fantásticos!

Antes, um banho para extrair o “verdadeiro fedor escolástico.”

E, desde 16 de julho de 1904, essa história é corrigida e revisada.

Eternamente revisada por seus velhos olhos que já não enxergam mais.

Eles só veem o nimbo, observam-no, inalam-no.

Você, busca ao tateá-lo... O sabor do velho papel com tinta.

Desde aquele dia, o Bloomsday...

E o velho irlandês adentrou-se num voyeurismo.

Uma forma de “paraíso dos escritores”.

Lá, havia todas as ferramentas que precisava para observa-lo.

Para sempre!

O livro definitivo.

Mas, mesmo lá, nunca encontrou a paz.

A tal “porra da paz³!”

Estranha paz...

Com músicas suaves e perfumes campestres...

Vamos!

Levante-se, o relógio bate!

Quebre tua lápide!

Impávido, levanta-te!

Quebre o epitáfio, como estava na carta:

“Um tão grande homem”, escrito por Nora.

Dela, vamos, salte!

Lança-te num voo!

Esvazie... A mente.

Silêncio e som...

Silêncio do som.

Paz... Respire... Esvazie a mente.

Ausência de conflito...

Continue respirando...

Essas coisas, quem dizia, era a Sra. McCormick.

Continue respirando...

Percebe a paz?

Respire... A calma, o repouso.

Paz, mesmo que... Seja efêmera!

Já não há inimigos a combater.

Nunca mais a mesma... Mas, você vai se acostumar.

E ela se tornará eterna, a paz eterna!

Que ele só encontrava no corpo de sua senhora, Barnacle Joyce.

Lembra-te como ardiam seus corpos?

Lembra-te da juventude e dos passeios em Dublin?

Respire a centelha da harmonia...

Deixe que ela te consuma, regozija-te!

Agora solte esse livro.

Tire esse velho óculos ineficaz.

E vá, ao lado da família, descansar em paz.

¹Leopold Bloom: Personagem central do romance épico: Ulisses, de James Joyce.

²Lucia Joyce: Filha de James Joyce e Nora Barnacle, nascida na Itália. Sofria de esquizofrenia e esteve sob cuidados médicos durante toda a vida.

³Frase de James Joyce para sua esposa enquanto escrevia “Ulisses”.

A Srta. Weaver e a Sra. McCormick foram mulheres abastadas financeiramente que deram suporte para que James Joyce pudesse escrever e publicar suas obras.

A Srta. Beach era proprietária da Shakespeare & Company e foi responsável pela publicação da primeira edição de “Ulisses” (1922, Paris).

Além de “Ulisses”, James Joyce também escreveu:

Dublinenses (1914).

Retrato do artista quando jovem (1916).

Finnegans Wake (1939).

O escritor James Joyce (1882 – 1941) nunca ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, mas críticos literários consideram “Ulisses” a maior obra escrita no século XX.

George Bernard Shaw (1856 – 1950) foi Prêmio Nobel de Literatura em 1925.

Samuel Beckett (1906 – 1989) foi Prêmio Nobel de Literatura em 1969.

Temple Bar, da cidade de Dublin, era frequentado por James Joyce.

Marciano James
Enviado por Marciano James em 23/01/2015
Reeditado em 19/05/2018
Código do texto: T5111542
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