Sinfonia Negra

A África concedeu-me veias culturais, amor pelo homem. Pincelou a África os traços opacos da minha pele. Exulto e exalto. Gosto do homem com genética africana. Devo aprender do negro sua expressividade nítida no olhar e ao olhar. Devo ter o negro como lição magna, livro de cabeceira e palmatória. Alma negra. Alma muito nossa. Alma branda como canção, sonata em si menor, pianíssimo e com dinâmicas tão leves quanto o rodopiar sereno de uma pena ao vento. Que esqueça da sinfonia negra a nota “dor”.

Não faça vibrar a corda: cale-se o violino, o violoncelo e o piano, endureça o arco e emudeça a harpa. O vibrar das cordas podem açoitar, tal chicote, o lombo negro. Em vez disso, ainda mais que pianíssimo, trine. O trinado provoca cócegas na alma. Quero a orquestra mais bela e mais competente. Quero, também, o maestro mais sangue e suor e expressão, e o solista vocal mais ensimesmado, monólogo, para a ópera que agora componho. Apresento minha partitura: o corpo negro, esculpido no trabalho debaixo do Sol Maior, nos terreiros onde queimam vivas as semibreves ígneas no compasso do algoz.

Não, não faça vibrar a corda. O vibrar é uma negação. Corre-se o risco de negar três vezes o que é negro e divino. E o risco de crucificar a cultura sem a profética ressurreição do depois de amanhã.

Prefiro mãos, colos e lábios negros extraindo a melodia. Enquanto interpreta, eles escolhem os extremos: o sub ou sobre-humano, pois é necessário despir-se do amargo do homem, desnudar-se para não desafinar os tons celestiais. O capricho branco faz os dedos alvos ousarem tocar a partitura negra ao piano enquanto as teclas deste se retraem em surdina num ato de despojamento e humildade. Lições extremamente sutis, pedagogia a ferro, fogo e afago.

Rendo-me à força e à virilidade negra. E à sua musicalidade. Tambores que lembram o pulsar e a beleza de sentir o estrondo no peito, remelexo no pé. Atabaques que ressuscitam divindades na ópera da construção do eco de vozes infindas.

E o último ato finda sem nenhum aplauso ou júbilo. Cai o pano.