Procela

Procela






Bom dia, como vai sua tia? Deixe-me realizar as apresentações: Sou criativo fanfarrão, canastrão de aluvião, pão bolorento por fora e por dentro, escrevo de pé, como de pé, tomo banho de pé, pessoas pensam que estão sozinhas, que estão malucas, deveras desequilibradas por causa de coisas que estão acontecendo e que parecem estar além delas, então lerão Procela, não apenas as palavras, mas, quando sentirem as palavras, Procela irá mudá-las. Antes de partir fui jovem com sonhos. Traduzia o que não pensava ou sentia, transpirava coragem, descia de bicicleta no modo banguela te imaginando na janela. Já fostes bela. Quando não pensava em nada, queria a sua cumplicidade. Sei que dançarei em cima de uma mesa de jade e nada poderá cobrir sua magnificência, nem a mendicância dos meus sentires ou a falta de complacência dos teus jeitos, calejei-me em retas e curvas tão longas como o olhar perdido no meio da imagem, me sentei com os apedeutas e entre eles fui rei por um dia, já comentei ter fugido da roda dos ímpios, trouxe fantasmas que espanto com o brio das minhas vestes, quis tanto a sua amizade que passei a lembrar de nada.

Hoje nos olhos, por segundos, me assaltam verdades.

Boa tarde, um instante, por favor, aguarde. Brincava com as crianças descendo na pinguela, de relance te vi na janela, lias Procela, ansiando que seu coração fosse desinteressado como o sol para o girassol. Outras pessoas leram, sentiram na carne seus efeitos, e sim, algumas vezes, com aquele sentimento horrível de estar perdendo tudo, caindo no abismo, sem frases filosóficas e clichês espirituais, não podiam desistir, voltar, queriam se desvencilhar, transcender, mas a iluminação não é amiga da mente. Vejo nuvens antes do crepúsculo, saístes da janela, justo hoje, trouxe comigo guardanapo de linho contendo o lanche úmido de tantos recreios da infância. Acreditei na tua amizade, durou pouco, talvez antes assim, no bolso jaz minha castidade, ontem teria sido a dignidade que certa vez postulei e ambas teriam ficado comigo não fossem os fragmentos de histórias velhas que se perderam como a grama que fica nos pés depois do passeio descalço. Fui jovem com sonhos, depois homem medonho, por fim paspalho tristonho.

Hoje nos lábios só me vem saudade.

Boa noite. Que a fortuna te afoite. As crianças cresceram, sua janela tem cortinas, sua silhueta se desvanece no mesmo andamento do anonimato que me rodeia, é minha aura pontilhada com arestas aparadas, antes das doze badaladas sentirei a capacidade incrível de ser ingênuo, quase idiota e de saber tudo, ser subitamente realizado, reconhecido e ao mesmo tempo estúpido, portar a inocência e a vilania, a vulnerabilidade e a armadura, a inteligência e a ignorância. Procela veio para cumprir sua função, vai entrar nos seus pensamentos, mergulhar bem fundo em cada fresta, cada canto esquecido, opaco, escurecido, cada compartimento
blindado da mente e das memórias a fim de limpar e libertar tudo isso, será a experiência mais desafiadora que alguém terá, e ao cabo de uma porção de tormentos e alguns sustos você emergirá resplandecente como um astro que desponta e eu lhe direi bom dia.


(Imagem: The Very Eye of Night by Maya Deren)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 17/04/2015
Reeditado em 26/07/2020
Código do texto: T5210491
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