Pensamentos

Caminho descalça por estas ruas repletas de ruído surdo, percorro suas montras, espreito em janelas vizinhas, não paro, não fico.

As pedras da calçada ferem-me os pés, o sol obriga-me a fechar os olhos e sigo em frente confiando em outros sentidos. Não tenho medo desde que possa olhar para trás.

O som das esplanadas mistura-se com uma palete de odores, essências da vida nem sempre fáceis de decifrar. Inspiro profundamente, não porque estou aborrecida, mas porque quero captar as fragrâncias singulares e a que procuro aguça-me o espírito, tanto quanto o atormenta.

Prossigo no meu caminhar, aparentemente, alienado e sem rumo. Distancio-me dos olhares que não observam mais do que uma superfície. Um nível abaixo da pele e tudo em mim se mistura, combina e intensifica. E o que faço confunde-se com o que fiz, assim como o que sinto me deixa alerta, suspensa e hesitante...

O ruído intensifica-se, assim como o verde da camisa esquecida no estendal. Roubaram-na e eu assisti, com o coração perto da boca e a martelar-me o ouvido. Absorvi o aroma, captei a excitação, tomei-a para mim e corri, descalça, ferida, mas feliz.

Caminho descalça pela rua, olhando em todas as direcções, tentando registar o mais possível as emoções sentidas a cada passo. Procuro confundir os sentidos, na esperança que a memória fique envolta numa névoa que se adensa com o passar dos anos, mas nem as pedras da calçada que me ferem os pés, nem a palete de odores que me deixa inebriada ou o nevoeiro cerrado que me envolve, repelem o sonho que me atormenta o espírito.

Sonho, disse eu, não pesadelo!

Um sonho perigoso que não obedece ao ciclo que alterna entre a lua e o sol. Vivo enquanto sonho e o que sonho são memórias de uma vida, esperanças que não se concretizaram, desejos que a realidade não alimenta, não sacia e não aniquila. Exasperante como as perguntas impertinentes que se insinuam e advogam a minha atenção: Recordas-te? É verdadeiro? O que pensas? O que queres? O que sentes?

Sinto e acuso a pressão. Não há alívio quando acordo, apenas consciência e uma vez desperta, sigo o rastro de mim mesma.

Ando descalça e enterro os dedos na areia, sinto-a quente. Ouço o som do riso que ri contra vontade. Ouço a voz quente e o suspiro que transpira e se agita na pele. Não paro, não fico.

Caminho depressa, como quando era fera e me zangava, criando distâncias do comprimento de um abraço e a dois passos do céu da boca. Essa tonta que nos divertia, enterrei-a sob pilhas de desilusão e ainda assim, respira.

Escuto seus pensamentos:

"Enquanto não puder existir,

continuarei a olhar para trás para que não tenha medo,

a andar descalça para que sinta o caminho,

ao alcance de um abraço,

absorta no céu da tua boca."

Ema Moura, 2/09/2014

Acompanha-me em: http://emoura-brokenwings.blogspot.pt/

Ema Moura
Enviado por Ema Moura em 11/05/2015
Código do texto: T5237786
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.