INÉPCIA VERMELHO ESCURO

Era quase noite e o crepúsculo debruçava seu esplendor costumeiro sobre as águas da lagoa da cidade maravilhosa e decerto que a noite lhe viria por inépcia.

Não por inépcia dele, mas pela que já coroava todos e tantos momentos de aflição e de dor.

Ele nem de longe imaginava, vendia saúde pela ciclovia das vias sem saída, todavia, pedalando para suas vias de fato, aquela seria sua última noite, sem luar, sem pestanejar, sem sonhar, noite sem tempo de recomeçar.

Noite sem chance, e ali, a esmo dos abandonos sem soluções, ele tombaria por inépcia.

Não por inépcia dele, mas pela inépcia que já coroava todos os momentos sem flor.

Aridez e desfaçatez zombavam pelos ares.

Talvez ele soubesse que não lhe seria possível continuar pela inépcia, não pela dele, mas por aquela que sentencia, de forma coletiva, todos os fins esperados e inesperados de morte em vidas desvalidas.

Por inépcia, muitos já tombaram como ele, perderam as ondas das calçadas lajotadas da "princezinha do mar", sem tempo, sem voz, sem entendimento, sem socorro preventivo; inúmeros tombaram num chão paradoxal de frio perene sob o sol quente de verão, com fome em meio a todas suas farturas furtadas, sem coisa alguma, aquilo tudo que caracteriza todos os nadas de todas as inépcias coroadas com abundância do que é bem alheio.

Tombaria por inépcia com fome silenciosa de tudo! E sem direito a pedir desculpas.

Sempre ela...a inépcia, mais um tanto de inépcia douta, de eloquências vazias, repetitivas, inépcia arrogante...que faz covas silenciosas para tudo e para todos.

Mas alguém, inepto para admitir o medo, diria que ele não parecia faminto, tampouco necessitado, fora apenas descuidado, ingênuo, quiçá culpado de acreditar que podia acreditar na sorte lançada pelas estrelas apagadas, das tantas vias lácteas ineptas de redenção; acreditar em poder ver o sol se indo, só mais uma vez, mas deduzo que não, porque já sei que há inépcias traiçoeiras, mas tão ineptamente traiçoeiras, que transformam todas as dores fundamentais em regozijos de sádico prazer.

"Questão de sorte é sobreviver" alguém disse ali, fechando as cena, algo atônito, em meio ao sangue vermelho escuro que ineptamente corria pelo meio fio do frio, sangue não costumeiro de correr parado.

Sangue coagulado pela inépcia, feito geléia de horrores, em meio à lâmina fria que lhe ceifou as últimas horas.

Mais uma lâmina advinda da inépcia...exposta ao meio fio das navalhas diplomadas.

Mas nunca houve inépcia para se matar, se matar de todas as formas eficientes.

Mais uma vida a jazer ali... e daí?

O que significaria mais uma vida perdida para a inépcia circulante pelas tantas vidas descartáveis a céu aberto?

Ele desitiu de ficar. Mas não escolheu. A inépcia escolheu por ele.

Resfolegou e parou. Estava livre.

Não ficou, mas nunca por inépcia dele, tampouco seria inépcia da vontade dele, da força dele, do voto dele, da fé dele, da esperança, do trabalho dele, enfim, sei lá, mas partiu dali pela inépcia das correntes paradas, que tudo levam, de todas elas, inclusive a de não mais se conseguir correr sobrevivente pelas artérias sangrantes que expoliam tantas vidas esquecidas.

Num cenário algo "contra-regras", surreal, sei que o Redentor continuou ali, perplexamente de braços abertos, a acolher e recolher Suas vidas e a perdoar os resultados ineptos do tudo.

E Jobim, em oração,cantarolou lá no céu.

Entendeu que chegara a hora de não mais se fazer um samba duma nota só. São tantas notas sem explicações...

Seria inepto para o momento tão sem partituras, então, prontamente compôs um samba "manero" com todas as notas dos tempos perdidos nas calçadas, repleto de canções prometidas que, sem a inépcia sobre a clave dum sol, poderiam ter sido memoráveis antes de morrerem nas praias de sangue, dum vermelho já escuro, desoxigenado de bons rumos e de propósitos coagulados...

Nota da autora: Em homenagem póstuma