Sempre os sonhos a nos mover os dias.

Não sou despeitada, mas bem que senti certa inveja quando da janela de meu quarto, acenei comovida pra mudança de Clarice partindo embora naquela manhã. Bem que gostaria de um dia poder partir também pra uma casa mais bonita, conhecer novos vizinhos... Saber o gosto de vida nova. Desdenhar a sorte, não! Nunca faria isso. Apenas fico triste de ver um bom vizinho se despedir de mim. Parecem dias de sepultamento. Fico lamentosa rememorando os momentos bons que tivemos... Sampaio diz que sou a mulher mais sentimental e sonhadora da face da terra, choro com final de novela, romance triste e até por morte de cachorro... Só por que lembro a data todo mês. Tenho até dó de lembrar o episódio. Bagulho meu cãozinho vira-lata, que há doze anos me acompanhava em casa, morreu “acidentalmente” esmagado pelas rodas do seu “Fusca” como diz, mas tenho cá minhas dúvidas. Tudo bem que além negro como a noite, já há muito andava cego e surdo a esbarrar nas coisas... Mas foi o meu grande amigo, isto não nego! Nunca reclamou se a comida estava salgada, apimentada, mal temperada, e me fazia festas todas as manhãs quando abria a porta da cozinha para saudá-lo também. Era um santo, comparado a Sampaio que ultimamente reclama até do café que bentinha faz. O mesmo pó, a mesma água fervida, a mesma xícara... Penso que o que mudou, foi o paladar e o gosto da relação. A cada ano mais rabugento e crítico. Clarice deve estar dando graças à Deus de deixar pra traz um vizinho como ele. A pobre penou com suas queixas e ameaças a respeito dos filhos. Dois meninos inconseqüentes como os nossos foram, e caso não lembre, sofremos os mesmos inconvenientes, mas memória de “marido” se perde com o tempo. Sim, vão perdendo tudo aos poucos. A carteira de documentos é o primeiro sintoma deste mal acometido aos homens, depois o chaveiro, as datas importantes, a consideração, a vergonha, aliás, só adquirem barriga e mau humor no decorrer da relação. Mulher não. Mulher vai perdendo os sentidos de propósito. Há anos que a minha caminha debilitada e sem remédio. Hoje ele fala e eu não ouço. Passa por mim e eu não o vejo e se insiste num assunto, concordo sempre, sem saber com quê... Mas se fui feliz nesta vida, devo a Sampaio estes momentos. Fez-me ser mulher completa e saciada, só não realizou alguns sonhos antigos engavetados, mas tenho esperança e sei que esta felicidade chegará por ele.

Hoje entendo e concordo com finada tia Dirce. Lembrá-la agora, até me comove, pois gostava de vê-la aos domingos à cozinha dançando bolero, enquanto batia a massa do seu tradicional bolo de milho com erva-doce. Vez ou outra gargalhava cínica olhando janela a fora, mas eu sabia por que, e disso, guardo segredo até o túmulo. Uma vez, quando voltávamos da missa pelo atalho da chácara, pois gostava de usá-lo ainda que mais demorado fosse. Era meu aniversário de doze anos e mamãe havia ficado pra preparar o almoço especial. Deteve-me e acariciando meu rosto com olhar tão sublime, disse: Rosinha minha linda mocinha... Vou te contar aqui o segredo que somente a você permito. Sorriu tão linda naquele momento. Homem é um mal necessário a vida de toda mulher, pois só ele traz consigo a felicidade. Balancei a cabeça concordando. E a felicidade minha rosinha, é uma hóspede sempre bem vinda em nosso coração. Eu era tão menina pra conceber o que queria que eu entendesse. Prosseguimos pela trilha de barro no meio de mato, ela cantando e eu pensando, sonhando com um menino de asas coloridas trazendo na mão um saco dourado cheio de pó colorido que me arremessava ao corpo. Era assim que eu via a felicidade aos doze anos, e foi ali que comecei a sonhar meus sonhos desde então. Senhor José Madeira, galochas cumpridas, o mesmo blusão xadrez azul com cheiro forte de suor e colônia de alfazema, recolhia o agrião as margens do mangue que de longe vimos. Parecia até que premeditava-nos. Na curva da mangueira ele já aguardava ansioso, sorriso escancarado de alegria, e muito satisfeito compensava o prazer com uma sacola repleta de verduras verdinhas. Tinha o olhar preocupado que dona Esmeralda não os visse, e antes de partirmos, trocavam frases esquisitas que hoje sei bem o que diziam e o que significavam um pro outro. Hoje eu prossigo a vida de saudades e ainda comportando a alma estes sonhos antigos, novos a me rondar a mente. Que diabo são estes intrusos que surgem e logo hospedam a alma da gente como se fossem donos por direito? Meus sonhos são amenos e delicados e não me afastam e muito menos põe risco a vida e realidade que vivo... Se um dia por ventura, Deus achar minha ficha perdida e me conceder o prazer de um sonho realizado, com certeza vou ignorar o de querer mudar de vida e pedir que realize o mais recente. O que nasceu na peixaria ontem ouvindo dona Glória contar sobre sua viagem de bodas, as belezas que detalhou me fez desejar e sonhar conhecer a cidade de Werneck e passear no trenzinho panorâmico reconhecendo as belas paisagens que tão bem detalhou e me encantou. Com certeza neste passeio vai nascer inspiração pra tecer mais um sonho pra sonhar, e esquecer as saudades que vão se acumulando as janelas do meu quarto. Afinal, sonhar é bom, faz bem pra pele!

Marisa Rosa
Enviado por Marisa Rosa em 13/06/2007
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