Vida de peixe pequeno num oceano de problemas

Aprendi a me contorcer pra caber dentro de mim mesmo porque o mundo ainda não tinha aprendido a conviver comigo. Com o passar das décadas, percebi ter ficado torto por estar a tanto tempo vivendo dentro de uma concha.

Apesar das lindas pérolas que eu criava a partir dos grãos ásperos da existência, sentia falta de presenteá-las, pois não as criei pra mim mesmo.

O problema é que eu não sou uma ostra, como você deve estar pensando. Cheguei neste ponto porque eu era um peixe e em tudo que eu comia havia anzóis escondidos.

Fui assim, sendo arrastado para o sentido de quem puxava, e embora eu me debatesse muito no início, eu só me machucava e não adiantava nada.

Como se já não bastassem aquelas linhas que me arrastavam, cada uma pendendo prum lado, um belo dia caímos juntos numa rede mundial, os pescadores e eu, e ficamos presos, todo mundo se debatendo. Cada um tinha uma ideia própria pra se livrar daquele imbróglio, mas todos impunham a sua e ninguém queria a dos outros, nem que elas fossem muito boas.

Como não houve acordo, quase ninguém escapou, só quem era bem pequeno é que a rede não segurou. Eu, que estava incluído no rol do cardume miúdo, acabei sendo libertado só por causa deste atributo, pois quem era grande ou estava inflado foi decapitado e envasado. Tiveram que aprender a se contentar em ser como sardinhas nas suas latas, numa prateleira de supermercado.

Fiquei à deriva num oceano de problemas, sem um recife de corais pra chamar de meu, ou sequer companhia pra chamar de nosso, e quando me vi no mar aberto, minha posição na base da cadeia alimentar me assustou um pouco. Foi aí que eu achei a concha, e pra me livrar do susto, entrei nela sem demora.

Mas viver numa concha não sendo uma ostra é uma arte à qual nem os maiores mestres conseguem dar jeito, acaba sendo tudo improvisado como uma horrenda colagem de remendos.

Aqueles que ficam paralisados lá dentro acabam morrendo brevemente, então, eu tive que me mexer, pus as nadadeiras pra fora e segui o desconhecido, sem saber o que eu poderia encontrar na vida.

Foi assim que eu cheguei no primeiro parágrafo.

Ricardo Selva
Enviado por Ricardo Selva em 08/07/2015
Reeditado em 08/07/2015
Código do texto: T5304138
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