...ela

... ela deitou o óculos em minhas mãos como se já não tivesse e não quisesse mais ver nada do que não suportava. eu não queria segurar, sabia o que estava a me dizer com seu gesto. ela insistiu, fechou os olhos cansada de ver, me entregou pesando o ar. entendi e segurei os óculos amorosamente e com todo respeito, era o que devia fazer com gratidão.

não se importava mais se a luz ficasse acesa ou apagada. haviam devas depois de desligar o interruptor. não queria mais beber nem comer. mas ainda queria a seu modo o controle da tv nas mãos. e reclamava. com reivindicação. deixou as roupas todas dentro do armário dobradas a finco com vinco nas gavetas e tantas histórias penduradas no cabide. o guarda-chuva. os exames. a bolsa preta. toalhinhas coloridas. perfume quase cheio. loção de leite de rosas, algodão. sacos de guardados que ia juntando para nada. fotografias antigas. sapatos mergulhados no pó. e uma sandália novinha que acabara de comprar.

os remédios de pingar nos olhos não quisera mais usar. dizia-me sem falar e sem olhar que não quisera mais ver nada. está me vendo? perguntei. balançou a cabeça, uma vez só, pra esquerda e pra direita. silenciei cabisbaixa. e ainda insisti. mas está me ouvindo. disse em gesto que sim, a cabeça cansada pra cima e pra baixo morosamente. numa fragilidade de pétala se mexendo a um soprar de brisa. eu sentira seu breve cheiro acariciar minha face, leve...leve...já indo longe.

outro dia estava a dormir sedada pela resistência de um tudo que lhe açoitava. a alma só então respondia. num fôlego após outro, idos. peguei na sua mão e ela apertou tão forte a minha várias vezes como quem corre um campo verde vasto comigo livre assim tão firme e segura que tive vontade de chorar. lembrei-me quando corríamos eu criança na praça do velho rio, ela me tomava nas mãos, seus cabelos ao vento e ríamos. os óculos de grandes lentes na face morena e vívida, ela agora apertava minhas mãos numa força de me puxar pelo braço pra brincar e corria longe eu sentia eu segurava suas mãos e dessa vez ria por dentro pelo silêncio cúmplice como de outrora. não voltaria mais. ela me dissera no segurar firme das mãos que foi bom estar comigo esse tempo que nos foi dado. ainda o seu calor me estava sendo oferecido. ela encontrara seu lugar bem depois do vasto e longo campo verde novinho e pleno de luz, onde depois eu não pude mais ir.

Alessandra Espínola
Enviado por Alessandra Espínola em 26/10/2015
Reeditado em 26/10/2015
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