Brincar com borboletas
(Claude Bloc)
 
 
Pensei ter ouvido a campainha. Fui lá fora apesar de estar atarefada. Cheguei ao jardim pouco depois do último som, mas já não havia ninguém no portão. Olhei para um lado e para o outro e não pude saber quem havia tocado ali. Esperei um pouco debaixo de um sol inclemente e como ninguém apareceu, entrei meio desconsolada. Não que eu estivesse esperando visita, mas pelo fato de eu ter saído de minha lida pra nada... Saí praticamente da inércia e encontrei lá fora apenas a minha rua em movimento, pessoas em sua rotineira trajetória e nada mais.
 
Voltei ao que estava fazendo, mas ainda ouvi o tempo matraqueando lá fora. Isso era um jeito infalível de me provocar! Esse vai e vem me tirou da devida concentração na minha tarefa... E percebi que as paredes mudavam de cor e pareciam retratar nelas memórias de outros tempos, como numa grande tela de cinema... Rever o tempo assim foi como remexer lembranças da infância, dos sonhos e também dos delírios que deixaram marcas, das esperanças mais desacertadas e das vontades despejadas em mim nas cores de um lirismo patético. Refugiei-me no silêncio para fugir desse redemoinho, dessa confusão generalizada. O que estava acontecendo?
 
Para me desligar desse torvelinho, abri a cômoda em suas minhas gavetas. Havia lá velhas cartas da família e junto a elas álbuns de fotos e pequenos objetos antigos. Meus, de minhas avós, de papai e de mamãe e pensei: “é ali que está o meu texto”. Obviamente não me angustiei procurando-o: ele veio até mim sorrateiro. Parecia olhar-me e pedir-me que o fizesse. Pensei em escrevê-lo quando eu e ele estivéssemos prontos, pois já sabia que cada um de nós tinha seus artifícios e antes de fazê-lo, precisava entender o que ele queria de mim.
 
De repente, isso que parecia ser uma dificuldade enorme virou um processo de gestação do meu inconsciente. Pus-me a ler o tempo pois acreditava que ler é alimento de quem escreve. Li várias cartas e muitas e muitas vezes alimentei-me daquelas tantas lembranças que me vinham. Fartamente! A seguir, eu as lançaria no papel depois de amoldá-las e transformá-las. Então, de olhos arregalados e corpo esticado na cama dediquei-me a essa metamorfose vendo as horas passarem, sem me preocupar com esse tempo que se arrastava ....
 
Me lembrei das coisas que a gente perde quando cresce. Essa inocência que nos faz ver a vida tão leve. Essa sensibilidade e a simplicidade, por exemplo, de rabiscar no chão essas linhas imaginárias em que traçamos nossos sonhos e que finalmente se misturam ao emaranhado de ideias que aturamos.
 
Ali deitada me pus a espiar entre os dedos, fingindo que estava dormindo. Podia, sem sair desse descanso, apreciar as pequenas coisas que prendem essa criança dentro de nossa alma, permanecer criança enquanto olhamos para o mundo com ternura e sem preocupações.
 
Apaixonei-me, então por esse olhar pequenino. Por minha atitude de criança travessa ali deitada teimosa e renitente. Passei a achar que ganhei o dia porque consegui alguma prenda que achava impossível até sonhar. Como criança acreditei que o amanhã será melhor. E sem sair dali, pus-me a brincar com borboletas... e fiquei horas procurando desenhos nas nuvens...
 
A campainha não tocou mais e pedi a Deus que eu nunca perca essa criança que encontrei aqui nem essa sede de poeta que é meu alento.