O MAR, Ó MAR

Lembro-me que do alto da colina onde fica a  igreja de Santo Antônio e de onde  avistava a cidade e o mar, em meio à escuridão da noite via no céu  um oceano de  estrelas e ficava admirado;
Imaginava estar montado num cavalo alado;
e que chegava a uma constelação qualquer; 
Para mim a  vida era noturna  e como tal, cheia de mistérios que só as estrelas poderiam desvelar;
A vida ainda não havia sido  ofuscada pelo clarão fulgurante do dia;
Com suas imposições e papeis definidos, hierarquias;
E jogos de máscaras de toda sorte;
Pensava que a realidade era apenas um sonho sonhado a luz do dia;

As vezes à tarde descia a avenida Confiança e ia até a prainha do bairro industrial, uma zona decadente com seu casario imponente e  abandonado e carcomido pelo tempo;
Atravessava aquela avenida General Calazans que era imensa  e cercada dos dois lados por paredes imensas de cor azul  da fábrica de tecidos Confiança com suas imensas chaminés expelindo de suas entranhas uma fuligem negra incessante que borrava o azul do céu;
Pelas frestas do imenso portão azul podia ver homens trablhando um trator levando caroço de algodão até uma máquina que funcionava como um dragão velho alimentada pelas mãos de trabalhadores;  
Mas a frente via-se a chaminé imponente da fábrica de côco "Serigy"  
Queria a todo custo chegar até perto do mar o mais perto possível;
Confesso que  nessas tardes me enchia de ânsia de tanta emoção,
Nada sabia ainda sobre a vida e o sentido das coisas;
A vida se apresentava a mim  apenas como cores, sensações, cheiros, pequenos prazeres;  não havia ainda culpa ou  dores nem amores ou desilusões, apenas um sentimento ambiguo de contentamento e descontentamento.
E lembro- me que diziam para eu fechar os olhos quando mergulhasse na água salgada;
E que tivesse cuidado quando pisasse na lama, pois poderia me machucar num casco de ostra ou de sururu, ou numa ponta de vidro;
E me dava gastura de avistar o mar e os golfinhos a piruetar ao léu;
E ficava a imaginar a imensidão daquele espelho d´agua sem fim como único universo possível;
E via os ganhamuns saírem  de suas tocas em meio a lama,  peixes pulando; cascos de ostras, sururus, gaivotas planando; 
Enquanto Homens puxavam  suas redes de pesca que tremiam  com o pulular de peixes;
Como aquilo tudo era bonito para uma criança do sertão que vivia na  solidão da caatinga e achava que seu mar era o São Francisco,
Que um dia ouviu  um canto seco e  triste de um garoto sertanejo chamada Jânio que dizia assim  “marmeleiro pendente, umbuzeiro virado”.
Ao contrário do sertão, ali tudo era  denso,   profundo, e havia um mistério que se escondia sob aquele  mundaréu de água sem fim;
Do interior das conchas com suas perólas  brancas, sonhava com histórias de navios piratas com seus carregamentos de  tesouros;
E pensava entre absorto e admirado o que havia nos confins daquele abismo preenchido pelo líquido verde de franjas  espumosas?
E enquanto pensava estas coisas simples e singelas  um mergulhão cortava o céu em ziguezague  com um peixe no  bico e eu ficava triste e extasiado ao  mesmo tempo,
As gaivotas davam voos razantes sobre minha cabeça;
Um  vento forte alisava as minhas costas e as palhas dos coqueiros zuniam fazendo estremecer seus imensos cachos de coco seco e eles balançavam, mas não  caiam, parecendo desafiar  a lei da gravidade;
Minha imaginação se  fundia aquela paisagem de areia, coqueiros, mangues, barcos à vela, pescadores, pequenos crustáceos, peixes podres e lama; 
Avistava mais a frente em meio aos manguezais aquela gente tão concentrada metendo a mão enlameada nos buracos para arrancar dali o seu sustento,
Os caranguejos se apresentavam a mim como aranhas imensas;
Afinal era eu uma criança,
Ah o mar,  era tão distante e tão perto de mim;
Como me sentia liberto com esse ser tão grandioso, tão misterioso que nos evoca medo e atiça a imaginação;
Diziam que havia um homem de nome Zé Peixe que se atirava no mar e passava dias sob o domínio das águas;
Ficava fascinado com essa historia e imaginava que esse ser tivesse a pele escamada, corpo de homem e cara de peixe; 
Observava o cais  adiante ele parecia flutuar sob os meus pés;
Um farol imenso se destaca na paisagem;
E pensava  num poema singelo e recitava  para mim mesmo:
“Na praia que se estende além de onde a vista alcança;
Olho para o céu azul- lilás;
O verde do oceano é como a cor dos teus olhos espalha-se em mim e a calma me apraz;
Sinto tudo suspenso por um momento;
Ouço apenas a doçe música do  oceano - a paz.
A onda alva e espumante arrebenta ligeira e reflui;
Lá longe a estrutura gigante de ferro e aço suga das entranhas do imenso organismo o líquido negro;
A brisa invade minhas  narinas e enche de ar puro os pulmões;
Golfinhos roteadores piruetam ao léu;
Gaivotas famintas voam rasante em torno da traineira que chega do alto mar;
Aponto meu olhar para além do oceano e avisto essa imensa planície líquida e espelhada;
Ao longe a cidade desponta em arranha-céus que brotam dos manguezais.
O Farol abandonado é tomado pela restinga;
Num minuto a tempestade quebra a calma e arrebenta como onda;
O sol e o céu azul-lilás dão lugar a um vento esfuziante;
Nuvens negras...
A paz é suspensa num instante”
Só o mar me dava sensação de liberdade, quero dizer o mar,  o céu e as estrelas, a lua a noite e as nuvens,
Continuava  ali imberbe e a noite e o dia se encontravam e trasiam consigo os seus mistérios, acendia  uma fogueira e  esperava a  lua transbordar para alem de sua borda prateada;
Mas eis que as três da madrugada as nuvens roubava a lua;
Cansado tomava um gole d´ água e adormeçia  na areia da  praia;
Em meio ao  breu do céu e a sinfonia de grilos e piscar de vagalumes; 
E amanhecia  sob a luz cintilante da estrala d´alva e perguntava a ela quando eu poderia descansar;
Não havia  viva alma ali, somente eu e meus pensamentos;
 E sem freios ou  filtros, o que meus olhos  viam  era o que viam  e o que  parecia ser;
Sem nenhum sistema metafisico, ou filosófico que me amparasse,
Apenas a inocência e a levesa  de viver e de estar ali naquela  praia
da minha imaginação e na praia propriamente dita;
No mar que era só meu, em meio a manguezais, areia fina, espuma e água salgada e coqueiros e aquele cheiro inconfundível da maresia a oxidar tudo em sua volta,
Que evocava  sonhos e fantasias marítimas ;
Como sugere a intermitente música que ecoa do mar;
E as  ondas iam  e vinham  como meus pensamentos e sensações;
Ah o mar era todo meu, dava-me  uma vontade imensa de adentrar   nele de modo a nos tornarmos um único ser,  uma coisa só, profunda e densa,  e de suas entranhas nunca mais sair e de pertencer a ti ó mar! 
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Labareda
Enviado por Labareda em 24/03/2016
Reeditado em 16/08/2016
Código do texto: T5584100
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