O discurso das pedras

A estrada sob meus pés não possui mais certezas que o destino e quanto à esperança que guardo a felicidade que me espera ao findar seu caminho batido de outros tempos, de outras pisaduras.

[E que por mim, barro e pó, não trilhem aqueles que depositam sua felicidade na esperança...] .

Pudera eu tirar fora a alma que me reveste o corpo etéreo e opaco, cansada e materializada pela certeza incrédula de haver mais tropeços para os passos descuidados, lentos e curtos que guiam os errantes ao fim de um novo recomeço. Sim, tropeços; Tropeços são privilégios apenas para os pés daqueles que ousam caminhar corajosamente... E há neste mundo maior coragem que dobrar os joelhos diante ao cansaço de se carregar o fardo de existir?

Se existe algum proveito na poesia ou na vida, sê-lo a melancolia; Não por aproximar-nos os afetos deprimidos ou amores perdidos ou dos chiliques e mimos de uma vida que não se desejou ou que se esvai na escassez do tempo que finda, mas pelo bom senso de distanciar-nos do que desejamos ao passo de que sendo essa,talvez, a maior angústia da vida e por tal tão bem distribuída, [faço juízo que cada um, outros mais, acredite tê-la à sua frente mais do que convêm...]

Saber que se nasce órfão não é menos doloroso que enfrentar as pedras, perdas e lutos que a vida não nos preparou; Imponho-me aos caminhantes. Melhor estar certo e, e por isso tão mais digno, saber que serás órfão antes de sequer ser concebido de fato ao mundo.

E o que é o mundo senão um lugar de se estar?! E quantos concebidos órfãos sequer verão sua nascitura antes da própria lápide?

Tolos todos os que aceitam piamente que não nascemos não vivemos e não morremos sós.

Posto que a virtude do que é doce não justifica o vício dos glutões... Lambuza-te a sós com a vida.

Na queda certa, própria e natural dos corpos não pagarei por teus pecados assim como não vomitarás por mim a terra que me recobre a boca porque tudo que é doce é humano e tudo que é pedra é pó.

Comemoro as vésperas de teu aniversário, empanturrando-me com todas as sobras da farta mesa decorada que hei de preparar-te amanhã, em tua homenagem... E se não vieres, ainda que só, memorarei, comerei e beberei por ti todas as partes do bolo que me dera por faltares à festa que era tua.

Queima-me a alma, por tua ausência, como queima a vela que não foi soprada, por não haver divindade alguma em qualquer sopro que se pretenda atribuir vida ao barro disforme que pedra ei de tornar-me.

Olho-me no espelho e vejo um homem velho e calvo e sem luz; Contudo não lamento ou brado sobre o tempo que me consome a juventude tal qual a chama consome a vela que deixei atrás de mim; Porquanto não perder a luz das ideias, manter-me-ei calmo.

Irrita-me mesmo é tua ausência, chama inextinguível que nada clareia.

Enjoa-me o refluxo amargo provocado pelos excessos em sorver a vida que já não sacia a sede adocicada, suave e narcísica daqueles a que se [ “deseja, deseja aquilo de que é carente sem o que não deseja se não for carente”]. Despeço-me de todos que não vieram e encerro o [Banquete].

Nasci para Ser e não para estar; Posto que duvide ser apenas forma e extensão daquilo que à priori existe tão somente fora de mim, e posso Ser em mim apenas o oposto daquilo que divide o que não desejo, que olho e não vejo destacado da minha autoconsciência de existir enquanto Estou ausente em mim mesmo.

Assim como a vela que queima, queima-me a alma. Não sou porque escolhi Ser, Sou porque não posso estar. E assim retiro-me de minha existência e de todo o fardo metafísico da onipotência do [Ser e o Nada] que recheia o corpo estirado e frio que está e já não é... Lápide humana, fria e petrificada.

E o que seria da vela sem o sopro humano da boca? Ou do todo sem a parte? Ou da alma sem a chama divina?! Cinza e cera; Assim como o homem que por esvaecida a esperança no peito traz consigo o amarelo pálido de um poente fogo, que se permite mover-se bailando ao sabor da brisa exalada pelo último suspiro, queimando-o incessantemente até que consumido por sua insana busca de compreender-se a luz da razão pura, desfaz-se em face de uma sala escura.

Livros, sonhos, letras, números... Retratos! Tenho filosoficamente, e, portanto sufocado, olhado para o passado, para traz, revisitando lugares, momentos e pessoas que me inspiraram justiça, compaixão, tolerância e, sobretudo coragem; Contudo não as encontrei em lugar algum pelas estradas onde andei. Chamo-lhes a cada uma pelo nome; Se não me ouvem: grito; e só ouço ecos que a mim retornam e desfazem-me por ter- me transformado em pedra de sal. Antes fosse lápide cravada em uma duna desértica.

E desespero-me, arrancando de mim as páginas em branco das notas que não tomei quando devia;

E por que tomar notas das estradas que trilhamos na vida como se estivéssemos a desenhar mapas que privariam outros errantes das supressas e descobertas que se revelariam ao caminhar? Eis a máxima: conheça-te a ti mesmo e ao outro o deixe livre para que possa se conhecer...

Seguir um caminho guiado por mapas ou viver uma vida norteada por regras herdadas sem reflexão não tem Graça Divina. Em ambos os casos até as mulas ou camelos mais desajeitados o fazem melhor que os homens.

Nasci corrupto, cresci ingênuo, ganhei o mundo e tornei honrada a sociedade.

E assim descobri que não há ordem nos passos ou rastros, mesmo que bem alimentados por intenções positivas, para quem caminha pela vida. E se algum progresso humano à de se pretender, não será pelos métodos medíocres dos preguiçosos que à margem da estrada e sob a sombra da arvore dúvida - se põem a repetir: [ser ou não ser?!]

[Levante-te e anda...] Dói-me vê-lo rastejante. Sois mais dignos que isso.

...E assim arranquei de mim as dúvidas e as tais páginas em branco impiedosamente, por entender que virtudes não se herdam, constroem-se ao viver.

Não com a ira própria que cega o olhar dos que só miram a vingança por satisfação do desejo pessoal de alcançar algum prazer ou bem próprio pela prática do mau reparador, mas pelo ofuscamento natural provocado pelo objeto odiado e apegado ao nariz daqueles que não sabem distanciar-se do rancor por estarem onde não se desejou [por covardia ou preguiça], pois só os que São sãos ou loucos, convalescentes talvez, podem escolher entre Ser ou Estar quando descobrem que apenas a sós, pode-se mudar o passado quando se tem por futuro o que fazemos no presente.

Não os vejo e não me veem e se os falo não me ouvem. E se por perto não os quero, não haverá distância no universo infinito que me seja agradável para evitar a presença daqueles que possam estar à minha sombra a sondar os meus segredos. Ser, eis o que me peço. Tal qual um poeta que escreveu, leu e rejeitou seus próprios versos e sentimentos em cálculos literários que não lhe pareciam justos e agradáveis à opinião alheia, amassando-os deitou-lhes à gaveta da escrivaninha... E depois, consumido pela dúvida própria dos loucos, revisita-os na esperança de encontrar algum verso hiato e inspirador que lhe passara despercebido à imaginação. Haverá loucura maior neste mundo do que fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes?

Por isso escrevo. Por não ser poeta, por não ser romântico... Inquieto quem sabe?!

Rascunhos mal escritos em tábuas de pedras, como em lápides que enaltecem a memória e recobrem os restos dos que já não são e sequer estão e que ao seu tempo são poleiros sujos. Mandamentos em rimas que instantes antes me consolava a mais fidedigna ilusão de serem os versos mais belos de um louco de que sem precedentes à imaginação poética emergiam-me as mãos firmes em traços curtos e adocicados, platônicos, claros e divinos, trazidos à vida prematuramente...

Pois, empiricamente, toda arte, inclusive a poesia e a letra, nascem boas. Serão os leitores quem as corrompem?

Mas quantos versos, rimas e poetas, concebidos órfãos, sequer verão sua poesia?