décimo quinto andar

você pode até achar que isto não são horas.

a derradeira buzina ecoou na avenida e eu não sei quanto ainda dura esta garrafa.

a lua me olha da janela sem esperança.

não uso relógio. estou deixando de lado esse tempo absurdo que come a fé e arrota desencanto.

amanhã só existe se eu abrir a cortina.

o sol só virá me examinar as novas rugas se eu erguer o corpo sedento.

você pode até dizer que isso não é vida. concordo. eu também me incomodo com as peças mal compostas, o espelho baço, a sala sombria.

e sorrindo você até me diria que a culpa é minha.

mas considere, minha cara, que esta é minha melhor oferta.

tenho aqui toda a vastidão necessária para arriscar um vôo rasante.

há o silêncio sob as escadas, o zumbido dos eletros, a paralisia do tráfego e o farfalhar longínquo de árvores gigantescas acorrentadas ao parque. o sangue do bandido ainda repousa em seu peito arfante. para que ir mais distante?

da sacada posso aspirar toda a fuligem de que meu coração precisa para se igualar à negra madrugada.

vês aquela luz acesa? outro que não consegue confiar o sono aos braços noturnos.

no meu caso, há o agravante deste copo, desta página em branco, e a clareza insuportável do interior da casa que ignora a redoma em que está imersa.

(então te botei pra dentro de mim como quem resgata um bicho. cheio de compaixão. mas o bicho de fato já vivia aqui. predador e presa no mesmo sítio, o duelo inevitável. sangue nas mãos.)

agora está gritando que eu fui cruel. entendo. você agoniza e sai de cena.

abro a geladeira sem vontade, sirvo mais uma taça, brinco com as chaves suspensas e arrasto os chinelos da resignação até o quarto.

nessas horas dá pena não ter outro vício.

ROSE VIEIRA
Enviado por ROSE VIEIRA em 08/11/2016
Reeditado em 08/11/2016
Código do texto: T5817587
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