décimo quinto andar
você pode até achar que isto não são horas.
a derradeira buzina ecoou na avenida e eu não sei quanto ainda dura esta garrafa.
a lua me olha da janela sem esperança.
não uso relógio. estou deixando de lado esse tempo absurdo que come a fé e arrota desencanto.
amanhã só existe se eu abrir a cortina.
o sol só virá me examinar as novas rugas se eu erguer o corpo sedento.
você pode até dizer que isso não é vida. concordo. eu também me incomodo com as peças mal compostas, o espelho baço, a sala sombria.
e sorrindo você até me diria que a culpa é minha.
mas considere, minha cara, que esta é minha melhor oferta.
tenho aqui toda a vastidão necessária para arriscar um vôo rasante.
há o silêncio sob as escadas, o zumbido dos eletros, a paralisia do tráfego e o farfalhar longínquo de árvores gigantescas acorrentadas ao parque. o sangue do bandido ainda repousa em seu peito arfante. para que ir mais distante?
da sacada posso aspirar toda a fuligem de que meu coração precisa para se igualar à negra madrugada.
vês aquela luz acesa? outro que não consegue confiar o sono aos braços noturnos.
no meu caso, há o agravante deste copo, desta página em branco, e a clareza insuportável do interior da casa que ignora a redoma em que está imersa.
(então te botei pra dentro de mim como quem resgata um bicho. cheio de compaixão. mas o bicho de fato já vivia aqui. predador e presa no mesmo sítio, o duelo inevitável. sangue nas mãos.)
agora está gritando que eu fui cruel. entendo. você agoniza e sai de cena.
abro a geladeira sem vontade, sirvo mais uma taça, brinco com as chaves suspensas e arrasto os chinelos da resignação até o quarto.
nessas horas dá pena não ter outro vício.