A moça

Numa manhã quase tarde de janeiro, ele acordou tonto, sem muita noção do mundo ao seu redor. Mas não tonto no sentido literal, como quem vê a Terra girar... Tonto, sem distinguir muito bem o que era a superfície do real e a substância... Malgrado isto, andava sem dificuldades.

Sua falta de senso residia nos pensamentos que tivera enquanto dormia. Ao acordar, o mundo acordava também, disforme e aparentemente sem sentido... Com certeza tivera muitos sonhos, consoante as explicações da psicologia. Lembrava-se de três. Ao garimpar, no fundo do vasto e turbulento oceano que era a sua mente agora, o primeiro sonho, sentia vontade de chorar. Ao mesmo tempo, queria levantar num salto da cama - que ora sentava - e correr em direção à porta, arrombá-la com toda a sua força, sair de casa como estivesse, e encontrar o cerne to seu sonho: uma moça.

Não conhecia esta moça; não sabia seu nome, nem se lembrava do seu rosto. Mas como no sonho esta tinha sido seu par numa dança, ele lembrava de suas costas nuas, de seu corpo elegante, dos seus cabelos marrons, ondulados, que o fazia hipnotizar - que o fazia evaporar de toda alma...

Esta dança, não era forte como uma expressão de protesto, nem tampouco erótica se mostrava... Em seus passos sincronizados, mas no limiar do descompasso, deslizavam suave sobre um chão de areia, que roçava a sola dos seus pés, mas que a isso não se dava atenção. Suas pernas entrelaçavam, como assim faziam seus braços. Ele não a olhava de frente, e nem isso era preciso - ele a sentia como nunca sentiu ninguém... Ele a queria como nunca quis ninguém... E ela também o queria! E ela também o sentia!

De relance, como num sopro etéreo, ela perguntava próximo a seus ouvidos se ele ainda a amava... Ele respondia que agora mais, mas de um jeito diferente, mais intensamente...

Ao isto recordar, sentia imensa vontade de vomitar, e verdadeira tontura, diferente da que sentira bem ao acordar...

Anestesiado com este sentimento - o qual nunca em toda a sua breve vida tinha experimentado -, ele relembrava, e para isto não precisava fazer força: aquela moça, o seu corpo macio, os seus passos leves, a sua dança estranha, estavam tão recentes em sua mente, que ele poderia ainda sentir seus movimentos; bastava que fechasse os olhos, e lá ela estava: seminua, elegante, não tão erótica, apenas o suficiente para reconstruir a sua ânsia, o seu desejo...

A dança acontecia, e seus corpos tão intensos, eretos, perpassavam por entre as marcas que já tinham deixado na areia... Como corpos voláteis, não pareciam pisar no chão, mas flutuar sobre o terreno, que era sim matéria! Mas eles não pareciam serem feitos do que tudo é feito... E nesta cadência, quase que imperceptível, suas almas em movimento dialogavam numa sintonia que, por mais que calados, gritava à toda volta. E isto o cativou de maneiras que nunca mais se esquecerá.

Levantou-se. Ficou calado durante todo o banho que tomara, durante o seu café e almoço, e assim permaneceu na condução que tomou rumo ao trabalho. Ao saltar do ônibus, caminhou por um campo cimentado, e seguiu paralelo a um caminho de grandes amendoeiras. Este ambiente enaltecia suas reflexões, sua projeção tão desejada.

Queria, se pudesse, evocar todos os entes metafísicos, que nessa hora pareciam tão reais quanto o sol que abrasava suas costas, para que trouxessem essa moça a sua fronte, caso ela fosse real... E se não fosse, que a criassem, que a construíssem exatamente como a sentiu em seu sonho, que não saía um só segundo de sua mente. Se não pudessem a criar também, que encontrassem alguém parecido, mas que pudesse provocar tantos sentimentos inéditos quanto a moça dançarina! Se também ninguém existisse nestes moldes, que sonhasse toda noite, e lá pudesse dançar a valsa excêntrica, eternamente e sem cessar!

Seu trabalho, o mundo que o rodeava, os carros que passavam em sua direção... nada disto importava como a moça... nada disso era tão nutritivo quanto a moça! Ou o espectro da moça, que seja!

Assim restou até o fim do dia, quando buscou, sem pudor, os por quês daquele sonho, que só agora tinha verdadeiramente se revelado como sonho, posto que antes isto não era possível perceber de todo.

Pensou que pudesse estar carente, que talvez fosse uma revelação, ou que mesmo pudesse ser os reflexos de um amor não correspondido na adolescência... Mas o que sentira durante todo esse dia não era um amor adolescente... Era um amor maduro, mais maduro do que todos os que já conheceu, mesmo que como um mero espectador. O que sentira neste fatídico dia - e que provavelmente se estenderia por toda a sua vida - era algo paradoxal, inenarrável!

Abrasador, mas ao mesmo tempo tão cândido... Intenso, mas ao mesmo tampo tão inebriante... Era sublime, tão sublime quanto nada pode ser, como nada já pode ser sentido em carne...

E foi aí que se deu conta que talvez o corpo não seja o começo e fim, que talvez exista algo mais importante, mas que só nos é dado a perceber em momentos de consciência maculada... Se a tivesse sentido acordado, talvez sua tontura tivesse se tornado um eterno desmaio, abismo de sua existência...

Talvez a tontura matinal tenha sido um lampejo de vida impossível, vestígio da montanha da morte...

Eduardo G Silva
Enviado por Eduardo G Silva em 09/02/2017
Reeditado em 17/04/2017
Código do texto: T5907024
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