A Hora dos lobos voltarem às Casas

"E de tal modo haviam se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu felicidade."

(Clarice Lispector in Laços de família)

Sábia Nilev, naquele dia se permitiu a algumas horas a mais na cama, não sabia que horas eram mas se entregava em longos espreguiçamentos. Talvez estudasse, talvez não, talvez faltasse ao trabalho naquele dia, talvez não, mas a garota que mais parecia mulher se levantou, caminhou até o banheiro se olhou no espelho e voltou para cama, sentou, esperou, esperou e bocejou, dois tapas no relógio e um desmaio de sono, trava-se a guerra do inconsciente: “Tenho de levantar! Não tem não. Sim, tenho...” Acorda novamente com o barulho que o doceiro faz ao abandonar uma caixinha de brigadeiros frescos em sua porta, com um cartão escrito a mão dizendo: “Com Amor, Udac”. Udac a conhecia a muito e sabia que a garota amava brigadeiros frescos pela manhã.

Solitária estava ela na mesa do café, aliás, na mesa de um caneco de café e uma caixa de brigadeiros, dormia solitariamente acordada, sentindo como se contando as vezes em que os carros passavam na rua. Com o doce entre os dentes se levanta vai até a gaveta do armário da sala e empurra o livro que estava para cair novamente para dentro da gaveta, fecha com força, pára, abre a gaveta o toma pelas mãos e começa a folhá-lo: “Um ósculo e um amplexo, de Odranoel”. Odranoel era um poeta da cidade, pouco conhecido, magro e feio, mas de bom coração. Atrasada, ela larga o livro na gaveta e sobe ao quarto para se arrumar. Ao ganhar as ruas, Nilev andava cada vez com passos menos rápidos, cada nuvem, cada tom cinéreo, cada vestimenta das pessoas dançavam lindamente em seus belos olhos pretos, poucos ‘bom-dias’, mas muitos ‘obrigados’, ela era muito querida e sentia que essa querência de sua pessoa era mais forte que ela, tal que o medo de romper com essa familiaridade era abafado em cada fala oculta ou gesto impreciso, opinava nas coisas e vida das pessoas com uma estranha certeza, da qual lhe era muito reconhecida e aceita em proporções de verdade e exatidão. De fato não era qualquer garota.

No trabalho conversava com o céu azul, como tela azul, pouco contato e muito trabalho, poucas palavras e muito amor, ela tinha um grande amor, daqueles de abraçar o travesseiro e chorar das duas horas da manhã até as cinco e acordar com a cara inchada, e fazia isso religiosamente duas ou três vezes por mês. Amava os animais, em seu trabalho, que não lhe dava com animais, mas sim com papéis, telefones e preposições organizadas e alguns micaretas ao telefone, isto é, pessoalmente raramente. Não escutava muito, falava bem e manso, era a mais monossílaba aos que lhe traçavam ao arco e mais ainda para aqueles que lhe ameaçavam o amor. Nilev carregava um amontoado de fibras musculares no peito que batia sempre que o telefone tocava e sentia que era ele. Certo dia bateu pouco, foi o dia em que temendo ser o poeta era um pobre cobrador, que também falava rimas ao telefone, mas ela levava o caso de telefone mais a sério que o moço e isso não durou mais de um minuto.

A volta para casa é muito tranqüila, sempre alguém lhe oferecia uma carona, e quando não, não se importava de ter de voltar conversando consigo mesma e partilhando algumas coisas que lhe ocorrera durante o dia, era o ápice das eivadas de parco para uma garota amada, e era o mínimo que se exigia para aquele amor compulsivo e flutuante, sim flutuante, pois era coisa de muito tempo. Soube um dia que ela falava com um poeta constantemente, e num semestre de um bom ano tiveram o relacionamento fraterno abrangente, ela lhe aconselhou muito, ele não se calava também e sentia necessidade de aconselhar e a mesma intrínseca vontade de querê-la, de querê-la bem e forte, por isso a incentivava muito a se alimentar. Ela era branca, não pálida, branca, e magra, lembrava leite e mais ainda com o sorriso largo, não amarelado e longe do coração do poeta, digo longe do coração, pois no semestre seguinte ela precisou apertar um pouco o laço da ordem natural das coisas, pediu logo ao amigo poeta, num dia de trabalho gordo e quente que se afastasse um pouco, seu grande amor poderia se desgastar, isto é, não por ele mais sim pelo seu amor, o poeta que já sabia do caso e, que mais, apoiava sim, pois sentia na voz e nos olhos dela que o vida só se daria assim por muito tempo, o só faz parte da verborrágica conduta, pois o só não é pouco o só são longos e duradouros anos, mede-se vida em pausas falas e silabicamente pela intensidade de sobressaltos ou aquela respiração diferente entre uma afirmação, que é do normal, para uma pergunta inesperada:

- Será que pensará em mim, digo, se não se casar com ele?

-Não posso, não quero, não posso. Eu tolamente não passo mais um minuto se quer...

É interrompida: Eu dependo de coisas não sintéticas, nada que procede do simples para o complexo, mas é fato que eu não entenda e o pretendido é que saiba que isso é o meu amor.

Nilev torna-se monossílaba em cada gesto de enrolar o fio do telefone e parecia que esticava as distâncias para parecer longe demais, para não lhe agarrar pelo pescoço e matá-lo de algum jeito dentro dela, ou apenas findar aquela conversa. Sim, ela era muito preocupada com os outros, embora não demonstrasse e não quisesse, ele poderia ser sempre um bom amigo, e seria se o amor que ela sentia pelo amor dela não ocupasse tantos lugares entre os átrios de seu coração. Mas o poeta não ficava cabisbaixo, demonstrava a ela que entendia todo aquele sentimento e que também amava uma outra, que era uma grande mentira, mas como cuidar de tamanhas feridas sentimentais se não abrindo outra e mais outra para que, esquecendo, possa se curar feridas antigas. Ele aprendeu que arranjando dor maior é que se esquece das cousas más, algum tempo a frente ele saberia que não más mas, muito possivelmente, coisas estranhas e novas, mas que lhe ocupasse um pouco mais, e de ocupação foi que o poeta foi levado às margens da vida de Nilev, margens não lhe cai bem, era uma garota difícil de definir-lhe a margem, se comparada a beleza, impossível.

No próximo dia pela manhã não havia mais barulho de doceiro entregando caixinha de brigadeiro, nem carros demais nas ruas e apenas ruídos de pessoas conversando ao longe e mansamente. Era domingo, levantou-se notou sua mancha no olho não pelo espelho do banheiro mais sim pelo vidro da janela, naquele dia não se olhou no espelho por todo o dia, não voltou à cama e dobrando as cobertas pôs o ursinho em cima da cama, cantarolou uma canção bem velhinha empurrou a cadeira da mesinha, abriu a janela, fechou as cortinas, respirou e desceu as escadas, não havia café feito, não havia livros fora de gaveta, não havia caixinha de brigadeiros e nem cartão, havia o próprio doceiro em seu sofá, havia uma fábrica muito grande de doces em seu quarteirão e Udac a amava.

Do poeta não carece melhores explicações, somente que em uma das poucas vezes em que ele falou a Nilev depois das muitas conversas já tidas, ele dirigiu-se a uma loja na certeza de que sairia de lá com o que procurava. Foi assim que ele esperava entrar e sair na vida dela, não sabendo como entrou. Certo é que Nilev tinha coisas demais a menos de dois braços na sua vida, e isso lhe era tudo, ao passo que Udac agora era parte de seus braços, uma mistura de sentimentos deliciosa, como café e leite com sabor matinal, ou leite e café com o sol na tarde esticado na soleira e logo mais a sombra por trás das paredes amarelas. Udac e Nilev estavam vivos e fortes.

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in “Nilev”

Leonardo Martins Nietzsche
Enviado por Leonardo Martins Nietzsche em 05/08/2007
Reeditado em 06/08/2007
Código do texto: T593714