Canta Galo

“Prefiro pessoas eternas a amores eternos.

Duro-me ao arco da incerteza de um amor com penar e melancolia,

mas faço questão que a alma escute até o fim uma prosa eterna,

ou o ruído eterno das pessoas.”*

Nilev não se achava sábia. Talvez não fosse mesmo. Levantou antes que o despertador gritasse e fez seu café da manhã acompanhada de um largo sorriso. Sorriso feio, verdade, mas o leitor não possui um medidor de sorrisos, que, além de medir, qualifica. Mas afinal, quando um sorriso é sorriso e se é por conta própria sem manutenção humana? Nilev serviu a si mesma o café. A armadilha matinal estava por agarrar a menina pelos pés, feios pés, lindos pés, eu não acho nada dos pés dela. Serviu a si mesma o café, mas não o devorou com rapidez. As abocanhadas lhe partiram lhe pegaram, primeiramente, na memória. O que ela havia feito até a presente manhã? Será que ela nunca pensou em servir-se de algo que não fosse dela? O leitor precisa saber que até aquele momento a garota não sabia até que parte daquela natureza cabia a ela própria. Não conhecia nada daquilo que buscava dentro dela e antes mesmo que pudesse se indagar das incertezas, se perdeu por um minuto nas mobílias. Não podia encarar aquilo que não fora planejado. E foi assim que voltou seus olhos tristes e serenos para o desesperado azulejo azul da pia, que era verde. Havia cor que mais amarrasse, mas aquele escolhera por recomendações de um amigo. O azulejo acabou por despertá-la e, despertada pela segunda vez, resolve se entristecer de vez, pondo cá fora o que realmente sentia. Quando pode olhar pela janela da escada, notando nuvens escuras e ventos fortes lá fora, recostou a cabeça aos dois braços que dobrara sobre a mesa e soluçou uma vez, tendo chorado por mais ou menos cinco minutos. Levantou-se e foi chorar em outros cômodos da casa, parecia que havia marejado toda uma toalha de renda vermelha que cobria a mesa. Tentou se libertar do choro quando abriu o armário, então o telefone, obediente a quem chama, toca. Nilev sabia que precisava parar o choro definitivamente. Respira e atende, era ninguém. Certo é que coisa alguma do outro lado da linha levou-a tão fundo dela mesma que a menina conseguiu se lembrar do compromisso dos amigos, não o de votos fraternos por toda vida, mas, efetivamente, seus projetos, anseios e trabalhos.

Nilev não tinha nada marcado para aquele dia, foi despertada ao acaso. Compartilhou consigo mesma que não ter o que servir a si própria é uma forma humana e exata de reconhecer que não se é tão completamente só, e de que, as vezes, o ser humano. Pode ser duas ou três pessoas falando ao mesmo tempo e antecipando coisas por toda a vida, isso é, foi o que ela compreendeu. Se isso ajuda ou atrapalha, não há ao certo como definir. Sabe-se que Nilev voltou a dormir.

28 de dezembro de 2005

(Datado pelo próprio autor)

(*) trecho de uma entrevista do autor in “Hzeta, Periódico” em julho do mesmo ano.

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in “Nilev”

Leonardo Martins Nietzsche
Enviado por Leonardo Martins Nietzsche em 06/08/2007
Reeditado em 06/08/2007
Código do texto: T595833