A Ornamental dos Movimentos*

No jardim dela havia pessoas e ela, uma outra menina aqui e ali, mas ela. Com seus dezoito anos de olhos petulantes olhava para baixo, não notava nada, mas inda sim olhava para baixo. Sabe lá Deus se havia um bicho preso dentro dela, mas eu, desprovido de mordaça, ferro ou pau, aproximei-me para lavar em quedas de águas uma tortura que me aterrava no solo, solo este que abandonei ao dar os primeiros passos em direção à Nilev. Conto-lhes isso tudo, pois pouco se sabe como isso começou, divido com o leitor o nascimento de uma dor, ou uma aurora, mas, se aurora, repreendo-lhe que saiba que trata-se de uma boreal, saiba também que pólos são, em suma, extremidades. Pernas, pra que vos quero? Levaste-me até a possuidora de olhos desavergonhados e colocaste-me entre seus pés. Não havia palavra alguma, só a respiração do mundo, entre mim e ela soavam apenas pedregulhos e cascalhos que abundavam sobre o canteiro, arranhando minhas botas e empoeirando os pés dela. Verdade é que Nilev desprezava-me com seus braços, digo apenas que os pés dela estiveram tão mais perto do que os membros superiores, ora cruzados, ora desmedidos e suspensos sobre o nada. Creio que Nilev tenha sido sempre um ser dormente, de carne fria, apresentava-se viva por um pulsar constante d’algo que eu não sofria, dos momentos. Era tão passível de momentos que era capaz de sentir sono três ou quatro vezes para enganar ou despistar um raciocínio próprio, o mesmo eu não poderia dizer de seus pensamentos, na verdade acho que certas coisas a respeito disso eu não compreenderia por longos anos. Trata-se de algo que existe, apenas. Afirmando assim, acabo por afirmar que tal existência carrega dentro de si as quilométricas chances de inexistência. São os riscos. Riscados estavam meus braços, unha após unha no mesmo braço, não saia nada de dentro de mim a não ser o fluxo respiratório alterado e olhares de força como os de uma pequena formiga. Foram necessários muitos olhares para enfim fazer morada na atenção dela. Uma atenção inexorável, ombros jogados para frente e um queixo que sorria para qualquer outro d’outro lado do jardim. Eu havia vindo d’outro lado do jardim, e se o leitor não sabe, vim, não somente por esta causa, mas esta causa havia me bastado apenas. O que basta nem sempre chega, chega apenas e as vezes basta. Flores, sol, vento, deixe-me dizer que o vento balançava sua clara bata, uma bata muito bem decotada, mas de singeleza em suporte e de mobilidade eólica hipnótica, e por isso perdi duas das três primeiras palavras, perdi pois me perdi com os olhos postos e em movimentos compostos que saiam dela. Antes de findar o olhar que iniciara muito rapidamente, atentou-me às flores, disse-me da beleza delas, elevou a mão aos meus lábios, tocou-os e os abandonou, aparentemente sem sentimentos algum. Ouvi sinos, sirenes, as outras pessoas pareciam andar mais rápido. Era como no jardim da infância. Vivo. Quando a hora do lanche termina, entre muitas pernas distancia-se Nilev com outras meninas. Minhas botas passaram a sentir como um sapato. Ficamos eu e as tais bromélias admirando a menina, as meninas, o importuno vento que levava a maioria dos cabelos aos olhos, mas não me importei, passei a importar-me assim que não pude mais avistar. O que posso ou não, depende de se encontro ou não, depende se existe ou não, depende se afirmo a existência ou fico apenas com a metade das coisas, se é claro, encontro nelas um valor total.

(*)Publicado Originalmente com o título "Ornamental do Tempo" em Julho de 2006

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in “Nilev”

Leonardo Martins Nietzsche
Enviado por Leonardo Martins Nietzsche em 06/08/2007
Reeditado em 06/08/2007
Código do texto: T595836