Sobre não caber

Inquietos pensamentos, memórias, anseios, projeções de um futuro não planejado transitavam pelos labirintos da mente há tempos inflamada. Os sonhos se espremiam, se debatiam e o pus da angústia escorria entre os olhos, que já não suportava manter abertos. Escorria entre cacos de uma esperança preguiçosa e sádica, que a tudo assistia de rabo de olho, parecendo regozijar-se com a cena dos membros se contorcendo. A dor, intensa, imensa e funda como a cova de um rinoceronte, já era física e durava mais do que as horas sem sol em alguma cidade da Rússia.

Nessas horas a alma parecia um barco a deriva em alto mar, sem saber se seriam as ondas, a tempestade, alguma criatura cuja existência fosse narrada em antigas e quase esquecidas lendas ou a combinação de todos os terrores o que finalmente a devoraria por completo. Maior do que esses, só o medo. Maior do que o medo, só as feridas ainda abertas, que já cansara de lamber.

Era um deserto. Retrato de devastação. Todos os gritos dos últimos cinco séculos ecoando de uma mesma garganta. Ninguém para ouvir.

Pedir socorro parecia vulgar a quem se convertera a solidão. Assim lhe diziam. E mesmo com os ouvidos entupidos de poeira e abandono, sangue pisado e insetos, acreditava conseguir entender a mensagem explícita: não há quem se importe. Porque também ela já não se importava mais.

Os laços, elásticos podres prestes a se desmancharem, coroavam a sentença da covardia que se sobrepunha a todo o resto.

Talvez dessa morte-desistência, do abandono de si mesma, viesse a nova experiência e a libertação do peso insuportável de existir em um tempo e espaço onde jamais conseguiria caber. Nunca desde o primeiro suspiro.

Elen Rodrigues
Enviado por Elen Rodrigues em 07/05/2017
Código do texto: T5992450
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