De partir o coração

Abro os olhos e começo o dia feliz por estar ao lado da pessoa que mais amo neste mundo. Estamos deitados na mesma cama e ela ainda está dormindo. Por isso, fico quieto, respiro o mais baixo possível e espero até seus olhos encontrarem os meus. Confesso que demora um pouco para isso acontecer – tipo umas 2 horas –, mas quando acontece, eu me ponho a beijá-la e acariciá-la freneticamente. Contudo, sua reação não é das melhores, colocando-me para longe com seus largos braços e erguendo-se da cama sem nem ao menos agradecer pelo meu afago. Mas tudo bem, já estou acostumado com o fato dela, ás vezes, acordar de mau-humor e não querer meu contato; respeito sua decisão.

Ainda assim, desço os degraus da escada bem ao seu lado e aterrisso na sala à procura de meus irmãos, que constantemente me recebem de braços abertos e com um largo sorriso no rosto. Vasculho a cozinha, os banheiros, o quintal, mas nada deles. Ao perceber que não estão por perto, choro bem baixinho para que, seja lá onde estiverem, possam me escutar e vir até mim. Faço isso por alguns segundos até ser chutado pela pessoa que mais amo neste mundo. Ela parece irritada, com as sobrancelhas apertadas, os olhos semicerrados e as mãos fechadas em um formato que eu conheço muito bem – também, como poderia esquecer a dor de senti-las em meu corpo? Entendo isso como uma ordem para que eu pare de chorar, e é o que faço.

Sou então ordenado a ir do quintal à garagem, onde, adivinhem, finalmente encontro meus irmãos! Ah, o quão feliz fico ao perceber que minhas preces foram atendidas; sabia que uma “choradinha” era capaz de trazê-los para perto de mim. Todavia, tal qual a pessoa que mais amo neste mundo, eles também não parecem muito empolgados com a minha presença. Pelo contrário, o que encontro são braços cruzados e rostos erguidos, evitando o contato visual comigo. Começo a achar a situação estranha, mas relevo ao pensar que, talvez, tenha acontecido alguma coisa que deixou toda minha família triste. Algo que abalou a todos eles.

De qualquer modo, minha família se reúne na garagem e, de lá, vai se sentar no carro que está estacionado do lado de fora da nossa casa. Eu vou junto e pulo no colo de meus irmãos, o que causa a ira da pessoa que mais amo neste mundo, a qual esbraveja sons que não entendo e direciona sua arma contra mim – chinelo nas mãos é sinal de que a brincadeira acabou. Para evitar ser “chinelado”, desço do acento traseiro e me ponho sentado bem em frente a ela, o que, a despeito da minha reação, faz com que receba a punição bem no meu focinho. Depois disso, um pouco dolorido, subo no porta-malas, local que foi designado para mim no carro. Pergunto-me, pois, o que foi que eu fiz de errado para ser afastado de meus irmãos, já que, até então, fui junto com eles em todas as vezes em que saímos de carro. Mas então me lembro donde estou e concluo que isso só pode significar uma coisa: PASSEIO!

Seguimos adiante um longo trecho até o carro parar. Quando para, a pessoa que mais amo neste mundo abre o porta-malas e faz um gesto que conheço muito bem – está me chamando para pular de onde estou, ou seja, a aventura vai começar! Horas e horas a fio serão, enfim, recompensadas, afinal não me lembro, em toda minha vida, de ter andado tanto de carro quanto hoje. Diante disso, devemos estar bem longe de casa, e só consigo pensar que fizeram isso para me levar a um lugar especial.

Porém, ao olhar para trás, deparo-me com algo que não esperava: o carro começa a se mover com a minha família dentro. Não hesito em latir o mais alto que posso a fim de fazê-los notar minha ausência, e, com isso, parar o veículo. No entanto, quanto mais alto lato, mais veloz se torna o carro, ficando muito difícil acompanhá-lo. Sinto minhas patas queimarem diante do ritmo que emprego a elas, mas, neste momento, nada é capaz de me fazer parar. Preciso avisar minha família que eles estão indo sem mim!

Mas é tarde. O carro se foi. Assumiu tal velocidade que fui incapaz de acompanhar. Lati e corri o máximo que pude, porém não obtive sucesso. Num primeiro momento, desespero-me, já que não faço ideia de onde estou, muito menos de como voltar para casa. Olho para o horizonte, bem no ponto em que perdi o veículo de vista, e ao chegar lá, acalmo-me ao pensar que eles logo irão notar minha ausência e voltar o mais depressa possível para me resgatar. Com este pensamento em mente, aconchego-me em uma calçada para esperar o retorno da minha família. Assim, espero um dia, dois, três; algumas semanas; um mês.

Neste momento, sou obrigado a dizer o indizível: fui esquecido. Deixado para trás, como um objeto usado e inservível. Por alguma razão, eles não me querem mais. Julgam que uma vida sem mim será mais eficaz. Uma pena, pois me esforcei tanto, batalhei de tal forma para conseguir o amor deles, que nunca imaginei acabar numa situação como esta: triste, sozinho, abandonado. Com os olhos caídos e embaçados, vago de rua em rua na busca de alimentos e líquido, acostumando-me a sobreviver com os restos deixados nos sacos de lixo, bem como com a água parada de poças e ritmos fluídos do meio-fio. Nada que se compare às refeições que tinha junto à minha família, mas é o que tenho à disposição agora para saciar minha vida faminta. Sabe, sinto muita falta deles, e daria tudo para vê-los novamente. Quando o marasmo bate, costumo me deitar e sonhar que desperto aninhado no colo de meus irmãos, voltando para casa junto deles enquanto recebo carícias e consideração. Ah, que delícia! No final, porém, ao acordar, percebo que nada mudou, estando eu à deriva de companhia e imerso na solidão.