Olhares

Eu e minha prima sentadas com os pezinhos pequenos enfiados dentro da água gelada da piscina de fundo azulado. Água gelada mesmo, em contraste com o sol quente, como os pés num canto do país e o resto do corpo em outro.

Estamos tirando proveito da nossa pele branca e dos tios bancários e viemos visitá-los, mais a fim da piscina do que de bater papo com eles.

Eis os três principais tópicos comuns das grandes tias-avós branquelas e católicas, sorrindo enquanto abrem a geladeira atrás do Guaraná:

- Como tá a faculdade?

- Tá prestando concurso? Acabou de abrir um concurso da Copel aí, não vai participar?

- Teu primo é concursado da polícia, foi trabalhar lá no Mato Grosso, tá fazendo um dinheirão, trabalha pouco. Segue ele, viu? Ele foi esperto, se formou em Direito e estudou muito.

Sorri e acenei, sim, tia, verdade, arregalei os olhos para enfatizar que tudo o que eu queria era isso mesmo, um concurso no Mato Grosso. Sonho de consumo.

Mas tudo bom, tudo bem, minha tia quer o melhor pra mim, talvez o melhor pra mim esteja no Mato Grosso, talvez o amor da minha vida esteja lá...tá bom. Beleza. Saímos antes que ela comentasse da crise e elogiasse Sergio Moro. (Santo Sergio Moro, padroeiro das famílias católicas e brancas e moradoras de condomínio)...

Então, fomos nadar. Uma família completa ocupava quase o canto direito todo da piscina, com seus guarda-sóis coloridos e homens de sunga laranja espaçosos; correntes grossas de ouro brilhando nos seus peitos peludos, pendendo sobre as barrigas de chopp. Um deles colocou os pés dentro da piscina e comentou alto ( talvez por descendência italiana, talvez por descendência de homens idiotas querendo filar os dois corpinhos risonhos à beira da piscina) que a água gelada era bem parecida com a água lá em Israel, onde nós fomos, lembra, mãe? A senhora assentiu, ajeitando os peitos no bíquini florido, abrindo mais uma lata de cerveja.

Depois, um casal chegou carregando sua filhinha, devia ter uns 6, 8 meses, chamada Mariá (Mariah, provavelmente, para que seu nome fique mais fácil de ser lido quando for à Disney daqui a poucos anos, Mariah, para ter referência à Nossa Senhora mas não tanto, porque Maria é um nome simples demais, vamos mudar a tônica: a religiosidade, a santidade e a virgindade saíram de moda há tempos. Mariá.) Mariáh estava metida em um biquininho minúsculo, tampando seus mamilos que nem se desenvolveram ainda mas já foram sexualizados e escondidos. Mariá.

Enfim, sua mãe muito bonita, dentes muito brancos e corpo muito dourado. Cheia de brincos e colares brilhantes, bíquini neon, tirando fotinhas da filhinha muito feliz dentro da piscina, batendo bracinhos e perninhas ( Muitos diminutivos, né? Muitos.)

Tudo isso me parecia muito postiço e fútil. O comentário de Israel, os colares grossos de ouro serpenteando na piscina, até a menininha, enfiada numa boinha que só segurava seu rosto pra fora e apertava suas bochechas gordinhas contra o plástico. Tudo imbecil.

Mas eu também não era postiça e fútil, à beira dos privilégios dos que me amam, sorrindo irônica enquanto dourava meu corpo ao sol como douram os frangos de padaria aos domingos, soltando palavrões interiores, incapaz de amar a água, o sol, os matos ao fundo, minha prima ao meu lado, incapaz de amar todos os outros seres humanos enfileirados ali? Achando que eu era capaz de detectar a falta de dignidade neles?

Não era belo, uma família aproveitar-se à beira da piscina num feriado, embriagar-se junto, com os celulares esquecidos bem no fundo das bolsas de praia, relembrando os bons momentos nas viagens que fizeram?

Não era bonito um casal levar a filhinha para nadar e divertirem-se com ela como se divertiriam com um amigo bobão, tirar fotos para depois quando ela crescer e não mais precisar de bóia nem apoio para cruzar a piscina?

Era lindo. Por que tudo me parecia irônico? Por que a felicidade nos parece infinitamente besta, porque passa? A tristeza também não passa, as duas não são lados da mesma moeda? Tem de ser um intelectual magrelo e triste falador de Foucault para ser digno? Não há um pouco dele naquelas pessoas, um pouco daquelas pessoas nele, os dois em mim e na minha prima, misturados? Eu os olhava de longe mas nossas figuras se misturavam nos reflexos da água...