Um relato fora do meu alcance

Relutei novamente como o faço sempre em sonho, pra que nele eu enfim possa permanecer. Vi luares em encrespadas veredas, senti as chuvas de um eterno amanhecer.

Ouvi rumores de uma vila distante, e parti de trem para que pudesse os descobrir. Lá visitei amigos com um coração que eu já não conhecia mais, e tornei-me parte de um vento que rasgava as ilusões.

Os semblantes tranquilos nos vagões da alvorada tornavam pálidas as criações da natureza. O frio enregelava meus dedos nus, mas no meu peito morava um calor viscoso, que assolava qualquer lembrança minha e não me deixava engolir.

O trem ascendia a galopes impávidos e irrompia as frestas do céu nebuloso. Sorrisos despontavam de todos os cantos, e eu reconhecia-os perfeitamente, mesmo sem ver os olhos de quem os abria. Era definitivamente um ver de olhos fechados.

De mente pura e também tão cheia, mordi as frutas que nutriam-se da chuva. As colhendo direto das nuvens, abocanhei uma trovoada que levou-me ao súbito limiar.

Minha consciência maculada tentava rasgar o tênue véu do sono enquanto meu mais íntimo eu puxava-me pra trás: era hora do acordar?

Nietzsche sorria em suas páginas, mas eu relutava com avidez, tentando a todo custo controlar o velho faroleiro que iluminava o meu mar. Mas a luz de seu instrumento já seguia passos próprios, quando os processos bioquímicos restaram a gritar e a bater seus pés enormes.

Era hora do acordar.

Meus olhos abriram-se ainda sem ler o que circundava-me, e num inexplicável lapso de tempo não me senti em lugar algum - o céu não me cabia, a cama não me deitava.

Ao cabo de segundos os amigos haviam sumido, assim como cuidaram de fazer os luares e os vagões, as chuvas e a doce alvorada que aos poucos saboreava. Agora eram só paredes e lençóis. Durante muito tempo tentei voltar ao mundo que abraçara-me com tanta liberdade, acreditando lá poder morar melhor.

O máximo que consegui foi uma indisposição no pescoço e uma forte dor de cabeça.

Eduardo G Silva
Enviado por Eduardo G Silva em 28/03/2018
Reeditado em 17/12/2018
Código do texto: T6292800
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