ADEUS AMIGO

As coisas se acabam. Estão sempre se acabando. E num lapso de tempo espantoso, se tomado da perspectiva universal. É desesperador para ele perceber que a existência não afetou um tempo muito maior que suas pretensões diárias. Sua obra se acabou espremida entre uma receita de bolo e uma revista pornográfica, enfiada numa caixa oculta em um armário qualquer.

Bate a saudade. Uma sensação tão brusca quanto a fome da madrugada após um texto digitado. E as lembranças desfilam como veículos desordenados que se chocam entre si, turvando a verdade do que foi, transformando fatos naquilo que entende como real. Nada, entretanto, é triste. Nem o amor perdido, nem a amizade sepultada. Tudo são fatos que não fazem diferença, entre o momento de se alimentar e o momento de pagar as contas.

Os delírios da composição são a melhor ilusão para fazer frente ao mundo muito maior que seu quarto. Então ele ainda entra lá, para entender o maior confronto: uma guerra entre deus e o homem que não sabe de nada. E nasce algum poema para fazer afronta a quem se dispuser a interpretar. Mas o que ele vê hoje é a preguiça das pessoas que se movem como macacos que retornaram a sua origem. A luz dos espelhos, a superficialidade do discurso universal entorpece aos que estão em volta e, mais um ou menos um, os poemas não farão a menor diferença.

Ele vai lá fora, porque tem de acender a um cigarro. Porque os vícios prendem os pés no chão. E enquanto a fumaça sobe, pode se lembrar de algum canto de Paris, onde viu seu amigo dobrar alguma esquina. Ou ainda pode se lembrar de toda uma galeria de pessoas inventadas, lamentáveis em seu próprio fim, grandiosas no propósito de entenderem que melhor que ser humano, é não ser nada além de projeção de uma mente triste.

Mas tudo isso são amenidades pensadas entre uma ausência e outra. Ele tem apenas fome e sono. Um sono, aliás, cada vez mais presente, porque o carnaval que sempre houve não lhe interessa. As bandas e os dançantes cada vez mais repetitivos, num turbilhão descendente de desgraça fantasiado de libertação. Por isso Richard Strauss talvez faça mais sentido do que fórmulas matemáticas.

Um toque da trompa na cabeça. Para ele, talvez um sinal de que noite irá desabar. Mas enquanto a escuridão não toma conta de tudo, ele faz previsões. Uma mais improvável que a outra. Pensa algum escrito bem vulgar para rir sozinho e no fim descobre: felizes mesmo, são os que se emocionam com receitas de bolo bem equilibradas. E eis uma valsa. Pré-fabricada como tantas outras, vinda de fantasmas que habitam as paredes da sala. Algo indecifrável. Porém menos indecifrável que o desprezo. Esse veneno lento e perfeito, que ele esconde em pequenos cantos da convivência, disfarçado como um sorriso ou caridade que se faz aos desgraçados. Ninguém verá.

O complexo de se estar em nenhum lugar é compreender a música que toda ação tem. Mas hoje em dia, ele não se importa de onde veem os acordes. É tudo quase silêncio, porque o universo não tomou conhecimento de sua diferença. E ainda a valsa persiste. Está manchando as paredes.

No fim, talvez, ele estenda a mão e pergunte onde estará seu amigo. Ou algum desses grandes amores...mas pra quê, afinal? As coisas se acabam. Estão sempre se acabando.

EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 27/07/2018
Reeditado em 27/07/2018
Código do texto: T6402079
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