A ESTÓRIA DE ORFO E DICINHA

A ESTÓRIA DE ORFO E DICINHA

(Lázaro Faleiro)

Bicharedo para brincar com a viola, sua escola, voz e cachola no cativar-se do encanto de cativos cantos, tantos e tantos corações acorrentados na magia de melodias sem igual; a flama de sua fama era mais que poesia, doce fantasia, algo sobrenatural; capaz de prodigalizar paixões, abrandar brutos e feras ao ecoar por aquelas brenhas, beiradas e taperas; Orfo, sua viola, sua bagagem; sua sina e coragem; as plantas se curvavam à sua passagem, as mulheres molhavam-se de tesão ao simples som de sua canção; o canto do cantor, repleto de amor, era mais bonito que o de todos os pássaros do infinito, que o zumbido do vento no ouvido da mata, que o gostoso grogoló do corguinho ou do chuá-chuá da cascata lá praqueles cafundós... O encanto de seu canto era uno, só; sem igual, algo celestial!

Dicinha docinho de donzela; dengosa, formosa, fogosa; flor em forma de mulher; morena singela, aquele que todo homem quer, a mais bonita da região; presente para os olhos, regalo para o embalo do coração; prenda preferida, paixão de Orfo, o amor de sua vida, a patroa tão boa, tão querida!

Mulheres, fazendo fissuras no coração, mordiam-se de paixão, acendiam velas pelo amor do cantor.

Mulheres da Mandioca Assada, de meninas a casadas, espezinhadas, mal-amadas, morriam de melancolia, dia e noite, noite e dia, só queriam o amor de Orfo. O encanto do canto do violeiro era tiro certeiro no coração... O cantor, para dissabor de todas elas, era olhos, canto e coração para o encanto de sua vida, a flor de seu amor, a querida Dicinha, sua meiga e santa mulherzinha!...

A verve da inveja viceja, troveja, esperneia, enleia, esbraveja no coração da mulher. Inveja é tentáculo, teia, tentação, treva! Inveja é Lúcifer, é o próprio cão!

Despropósito de despeito; o peito em pedaços, coração bagaço só, no apertado nó da paixão; daí deu-se o engaço do enguiço, o feitiço de fêmeas em fracasso; feiticeira famanã deixa Dicinha doente, dolorida, entrevada, tantã! Dicinha abestalhada, doida, biruta, coitadinha só soluços e ais que ecoam pelas brenhas, beiradas de rios, grutas e quintais e se evaporam na lonjura dos gerais.

Orfo, amorfo e órfão do amor de seu amor, era só saudade, solidão e dor em sua paixão musical, sua sina e seu mal; Orfo, o coração despedaçado no aço do violão, a canção; Orfo, sabiá engaiolado... Na crueza e incerteza de um porém, fez-se sol em seu padecer e a chuva chegou numa manhã de arrebol e um anjo apareceu trazendo esperança para seu viver, acho que por ordem de Deus: A premissa da promessa veio-lhe em risonho sonho de sã energia; teria, na verdade, que enfrentar o frio de junho e o desafio de levar Dicinha a cavalo, no embalo de muitas madrugadas, noites e dias, à Romaria de Trindade; ele na frente, os gritos renitentes da paciente..., Ele, em seu sofrer sem poder olhar para trás; dias e dias de delírios por demais... No Santuário do Pai Eterno o inferno do enguiço do feitiço seria desfeito, no tecer do desfazer-se de laços e fracassos, cessando assim tudo de ruim: a doença, a demência, o embaraço, os ais; porém é preciso preceito, tudo tem que ser bem feito. Orfo não pode olhar para trás até adentrar o Santuário, caso contrário, o fardo de seu fadário aumentaria, sua amada morreria, no exato distrato de sua aleivosia...

Criar coragem para a viagem? Amorfo o sofrimento de Orfo. Ele na frente, Dicinha atrás; gritos aflitos cortam o infinito, ecoam pelas campinas e vargens e voltam para a estrada, dolorosas marteladas, cortantes ais – facas afiadas no coração do rapaz!

A dilacerante dor da doente; aqueles ais incessantes a todo instante, a mexer com o coração da gente... O elo e anelo daquela paixão; o peso daquele pesadelo... O tempo a ir-se lento, lanhento, gosmento... Enfim terá fim tanto sofrimento? Orfo, fraco de forças, no sem fim do esforço de tentar buscar seu intento...

Tudo tende a ter fim no terminar da tamina; Trindade toda catita, toda bonita, já à vista. De uma vez, voa-se o voto, o intento do artista: Pródigo padecimento, o de Dicinha; sua dor, sua sina que nunca termina; sôfrego, sofrido, insustentável sofrimento, o de Orfo; orfandade e viuvez de uma só vez, no vezo da variação, o marido desensofrido, de tanto curtir gritos tão aflitos da amada, contundente afeição de cortar o coração, o olho, a olhada para trás... Foi o fim da façanha, o fiasco do fracasso total, o triunfo das forças do mal: Dicinha, passarinho aprisionado, enfeitiçado, morre nos braços do amado; furtiva fatalidade: no zás do azar de não mais voltar, sua alma boa voa para a eternidade.

Abrolhos são as lembranças dos olhos da amada, nas cordas afinadas do violão: A carne, o corpo, o tempero do cheiro de amor, o tesão; o beijo, o passo a passo do amasso e o cortejo de sucessivas saudades, mornas, moídas, puídas; poderosas recordações; finas facas fazendo fendas no coração, transmutadas em tantas, ternas, tristes, enternecedoras canções; grito contrito de amor tão bonito, batendo brenhas, beiradas, herdades e socavões, no multiplicar-se da saudade; infinidade de poderosas, pródigas paixões, preenchendo de poesia os corações... Orfo, louco como poucos, sofrida solidão ; solilóquio com as cordas do violão; dor de declaração de amor; Dicinha, doidice, obsessão! A amada eternizada no cálido cantinho do coração!...

As mulheres da Mandioca Assada, enfeitiçadas com a cantoria no repetir-se de todos os dias, urdiam malquerenças, maldades – tirânica, tesa traição!

Mandioca toda assanhada no grosso alvoroço da mulherada: Depois da missa, a festa; aí o trem presta; o leilão, a cervejada, o pagodão; a cantoria furando a madrugada fria... Orfo, sua voz, seu violão, sua pungente paixão: Quentes canções, coração incandescente no remoer do reviver recordações de Dicinha, sua mulher, sua rainha; Eta saudade com dimensão de eternidade!!!

Violão e voz, no diapasão da saudade, vibram, tinem, tangem tragédias, arrelias e estrepolias no estrepitoso, voluptuoso vaivém da folia das damas no salão. Odor de fedor, poeira, porra e suor, perfume vagabundo! Mandioca Assada, sovaco do mundo! Mulheres alteradas, mal-amadas, mordendo-se na profusão da bebedeira da moagem, é só doideira de paixão... Orfo, na contramão da estória, faz cócegas com suas canções nos corações daquela escória de fêmeas, catrevagem de selvagens, fêmeas no cio... A vida de Orfo por um fio... Frenéticas no fuzuê, naquele porquê do frenesi sem nexo, famélicas por sexo, no amplexo de poderoso tesão... Orfo o alvo, a atração da mulherada...Trejeito de tragédia... Êta mundo cão!!!

“Troço! Trem dos trezentos!!!”

O facão faiscando na fúria da paixão... Aço duro, furo no pescoço do moço e aquele poço de sangue no salão... Gritaria, histeria, confusão! O mundo num sus de segundo, caído ao chão! O troféu, a cabeça do cantor na alva bandeja que as mulheres beijam, no furor de tão incompreendido amor!

O ritual de tão desmedida paixão, a funesta procissão, o cortejo de fêmeas feridas em direção ao Rio Claro... Tesas, presas no terminar da tragédia, as mulheres e o troféu – a cabeça do cantor...Aquele horror de atavio, amarrio que as prende ao rio...

Por fim, o fim da funesta festa. No marasmo da noite, o orgasmo coletivo, o ápice de tão macabro ritual, o escracho final: Ainda quente, a cabeça do cantor, a rolar rio abaixo...

No açoite do acinte e do confete de tão sinistra noite, a magia do mito se repete: Desatino do destino? A cabeça do cantor, cobiçada flor, num alo de luz e cor a deslizar mansamente, docemente, com altiva nobreza, pela correnteza do rio... Dá-se o inusitado, o certificado de sua paixão – voz e coração; o espanto, a proeza: A cabeça canta , repetidamente, o comovente amargor de uma canção, no doer do coração, no carpir do sentir dor e no sumir- se na imensidão daquele amor, levando, lavando toda mágoa e dissabor:

“Dicinha, ó Dicinha;

Meu amor, minha rainha!

Dicinha, ó Dicinha;

Meu amor, minha rainha!...”

E a lanhenta ladainha ecoa lenta, voa mais e mais em doloridos ais. A água do rio, num desafio, purifica toda mácula da maldade e crueldade daquela gente, no esvair-se daquela voz plangente – um só e um nó em nós – a prender e a perder-se na pureza da correnteza do Rio Claro....

( Iporá, 28 de outubro de 2.003 ).

Lazaro Faleiro
Enviado por Lazaro Faleiro em 16/08/2018
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