* Estrada (Poema para L&R)

Cheguei...

Eis finalmente a estrada.

Antigo caminho que se renova a cada vez que o percorro.

Eu pego a boca da estrada e desvendo o seu trajeto, abro porteiras, entro pelos atalhos, subo os picos, os montes, escorrego pelos vales, sigo pelos braços laterais, pelos desvios vicinais, desnudo as trilhas, os atalhos, os entroncamentos...

Observando e desbravando a paisagem, vou (re) descobrindo o corpo desta estrada onde quero fixar moradia, caminho de terra que se revirginiza a cada passo meu, estrada recoberta não por algum linho fino, seda vucana ou caxemira (aqui na nossa terra dispensamos frescurices), mas estrada cuja cama de pele natural recobre-se aqui e ali de um macio capim e de uma suave camada de grama que enquanto passo me atiçam os desejos do olfato. Longa estrada que longa deve ser, para haver tempo suficiente de andar, ver, explorar, cansar, parar, descansar e continuar, respirar, aspirar, suspirar, sentir cada curva do relevo, cada planície, cada monte, cada vale, cada senda, cada recôncavo.

Rota perfumada de terra firme às vezes, outras vezes de riacho/córrego/rio/cachoeira espumantes, trilhas ladeadas de folha, de fruto e de flor. E enquanto caminho ouço em sua homenagem o gorjeio dos pássaros e você chove, você estrada faz sol e venta no meu rosto, me acaricia a pele e eu... eu continuo indo, passando ora pelo meio, ora pelos cantos, ora pelas laterais do caminho, ora por cima, pelos morrinhos, pelos picos, ora por baixo, e desvendo os seus desvios, os seus férteis vales, abraçado pela vegetação das suas reentrâncias e entroncamentos, subo e desço, atravesso cercas, me embrenhando ávido de descobertas. Estrada-casa de suspiros orvalhada, de lua e de alvorada, habitação que me dá abrigo e me alimenta, me sacia a fome e a sede e depois me põe pra dormir no seu colo recoberto de gramíneas e me canta uma canção de ninar... porque eu sou o caminhante, andarilho que busca o aconchego do seu colo, o seu calor, o seu carinho, o seu abrigo. E se procuro a sua terra é para complementar a minha, que é pouca, que é tímida, que é rasa, é para me desmetadizar, me fazer inteiriço, fugir da falta pra encontrar a fartura, e finalmente preencher com a sua extensão o território da minha alma. E se dizem que é melhor o percurso do que a chegada, se dizem que a expectativa acalma e morre ao atingir o objetivo, então retorno pelo mesmo caminho, refaço ininterruptamente o percurso de ida e de volta, pra chegar e partir e chegar de novo na sua morada... porque esta estrada é o meu caminho, este caminho é a minha vida, e nas nossas vidas as expectativas jamais morrerão.

----------

* Poema para L&R

Doravante e à guisa de explicação (três leitores já me questionaram), todos os meus poemas, novos ou republicados, levarão este subtítulo: "Poema para L&R". Assim mesmo, duas letras casadas com o ampersand. O principal motivo é que me sinto incapaz de explicá-los, pois percebi que quando os escrevo estou fora de mim, ou alienado ou insano ou bêbado — embriagado de poesia. Mas embriagado como se fosse pelo álcool, estado pelo qual creio ter ficado completamente tomado apenas duas vezes e não me recordo de nada nada enquanto estive assim dopado. Exatamente com relação à poesia, que só me dou conta de ter feito quando recupero a lucidez. O mesmo que aconteceu quando um amigo poeta russo me pediu para traduzir para o português 50 dos seus poemas e eu, ao sair fora de mim (só assim seria possível aceitar tal empreitada sem entender o idioma) traduzi. Quando vi, não sei de que forma fiz, já estava feito. E por incrível que possa parecer, o meu amigo disse que o trabalho ficou muito bom e desde então tem publicado os poemas em português em revistas da Rússia e da Europa. Mas o que ainda mais me surpreendeu é que outros poetas, estes brasileiros, também me disseram ter gostado da tradução. Imagino que todos estivessem querendo me agradar. Para melhor ilustrar a minha sandice, escrevi há anos um pequeno artigo sobre a arte de traduzir poesia. E este relato aqui é para corroborar o que afirmei mais acima, que não adianta me pedirem para explicar os meus poemas, pois eu não saberia. Portanto, eis a razão do "Poema para L&R", com o caractere tironiano interligando as consoantes, talvez numa tentativa, também impensada, de dar algum sentido a tudo isto. Agradeço por lerem e comentarem a minha poesia, mas não me peçam dela a decifração.