O senhor e a flor cilíndrica

Naquele dia eu perdia partes. A visão perdia o foco. Um sufoco escuro desenhava-se nas entranhas. Eu vivia meu próprio luto, de modo que minhas partes deslizavam lentamente pelos meus dedos. Era um luto antecipado, emocional, agudo. Nada existia, naquele dia, além da pulsação inconstante dos nervos.

A caminho dos nadas rotineiros – que em tal perspectiva mais nada me pareciam – a visão toma foco. Naquele ônibus menos barulhento que minhas emoções, um senhor, vestindo uniforme azul e botas de borracha, semblante humilde e tranquilo, com alguns bons fios grisalhos que saltavam aos olhos, direcionou minhas lágrimas para si. Carregava um raminho singelo de flores roxas em uma sacola de plástico. Flores cilíndricas. Seria uma lembrança para um amor? Final do dia, após o trabalho, um ramo de flores. Reconstruí sua história. Senti dentro de mim. Isso porque já fui flor de alguém. O presente do senhor trouxe à tona lembranças das antigas regas que recebi. Regas carinhosas das quais fui violentamente privada.

Perco partes. Uma rega não tão pura tornou-se mais constante que meu amor. Uma, duas folhas caem...

Chorava sem cautela por mim e pelo que me tornei. Quem me tornei morre devagar, desloca-se, fatiga-se na incerteza e na bifurcação deliberativa. E o significado do senhor e a flor, da idade madura e a manutenção de um amor valioso... tendenciosamente o orvalho cansado pingava das folhas do meu coração. Um orvalho de verões passados, que insiste em pingar das feridas.

Amanda B
Enviado por Amanda B em 19/09/2018
Reeditado em 19/09/2018
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