O boto
Conto em versos
O céu vai se avermelhando e o sol se pondo, mistura numa paleta de cores, vivas e brilhantes, as nuvens e o rio que têm horizontes a perder de vista. A mata estremece e canta com o chegar da passarada. De repente tudo vai se acalmando, o violeta toma conta das tintas e o rio soluça baixinho as saudades de quem partiu e ecoando o pranto de quem ficou.
Em frente do rancho de Zé Carapina os amigos vão chegando. Zé Carapina, o melhor carpinteiro das margens do rio Xingu, já acendeu a fogueira na qual misturou estrume seco de gado para a fumaça afastar as muriçocas, as carapanãs. Este era o ritual de todo sábado ao anoitecer: os amigos, pescadores, os condutores das chalanas ou catamarãs, um ou outro seringueiro vinham para contar ou ouvir os "causos". Sentavam-se nos bancos rústicos que Zé Carapina havia espalhado debaixo do caramanchão e pegavam a prosear. Os cigarros de palha acesos, os cachimbos de barro pendurados no canto da boca, as pernas cruzadas na altura dos joelhos e o papo começa a rolar. São casos de pescarias, ataques de onça ou catitú mas vai mesmo esquentando quando vem as assombrações, as artes do saci, do curupira, do gigante Gorjala. É de arrepiar!
Nessa noite, Zé Carapina distribuiu mocororó - pinga feita de mandioca ou milho - à vontade. Brindavam o descanso de sua filha Elvira que dera a luz à um lindo menino.!
Agora o leitor se ajeite melhor para tomar conhecimento do causo:
Nas profundezas do rio,
Nas noites de lua cheia,
O boto é como a sereia
Ou como uiara do rio.
Como a sereia do mar,
É peixe e é mulher
Num corpo só a nadar.
Mas o boto é pior ainda
Porque a sereia é precavida
Não vai em qualquer caída,
Não se deixa enganar.
Se o homem é tolo bastante
Pra uma sereia seguir
Não vê que peixe é peixe,
Não tem nada a possuir...
Mas boto é traiçoeiro,
Manhoso como ele só,
Se faz de moço bonito
De chapéu e palitó.
E sai lampeiro do rio
E vai pras margens zanzar,
Vai caçar moça bonita
Nestas noites de luar.
Com muita lábia, e manha,
A mocinha ele assanha,
Vai na mata se deitar.
Depois de satisfeito,
Com riso de satanás,
Nas águas ele se atira,
Deixando a moça para trás.
São esses filhos de boto
Que o povo vive a contar
.Não tem nenhum sobrenome
Nem registro para mostrar.
Chegado de muitas léguas
Na poeira a caminhar,
No rancho do carapina
Um moço veio assentar.
Moço calado, cansado
Mas de muita fortaleza
E disse ao Zé Carapina,
Possuir muita destreza
No sereote e no martelo.
Bem podia ajudar,
Por um prato de comida
E lugar pra se arranchar.
O Zé olhou-o de lado,
Examinou com cuidado
A roupa, o jeito do rapaz
Depois disse admirado:
Donde está o teu sapato?
Vive assim de pé no chão?
O moço ficou vermelho,
De falar não foi capaz.
Depois falando sem medo
Mostrando a ponta do pé:
- Tá, me sobrando um dedo
Mas nisso já nem dou fé.
Pra andar não me atrapalha
E rindo, numa careta,
Contou até achando graça:
Me chamam "pé-de-paieta"
Como a palheta se espalha.
Gostando do jeito dele,
Zé Carapina concordou,
Mas disse logo o rapaz:
- Eu não quero pagamento
Mas uma coisa vou pedir:
Que o senhor me ajude
Uma chalana construir.
Vou sair por este mundo,
O velho rio vou subir.
Como vê, meu bom amigo,
O meu tempo eu não empato,
Para guiar um bom barco
Não preciso de sapato.
E pé-de-paieta ficou
Trabalhando com muita raça
Seu nome foi conhecido
Da ribeirinha até a praça.
Mas pra acabar de contar
Esta história enfadonha
Zé Carapina ouviu,
E sentiu muita vergonha,
Elvira contar pra mãe
Que esperava a cegonha.
- Foi o boto - ela gritava –
Que do rio ele surgiu
Me carregou para o mato,
Lá me usou e sumiu.
- Quando foi, me diz, Elvira,
Que isto te aconteceu?
- Foi quando o pé-de-paieta
Na chalana o rio desceu.
Zé Carapina, coitado,
Foi ficando tão zangado
Que no rio se atirou.
Levava no cinto um facão
E no meio dos água-pés
O boto ele encontrou
E o bicho ele furou
Da barriga ao coração.
O causo se espalhou
Mas o Zé guardou segredo
Que no neto tão querido,
Em cada pé sobrava um dedo...