O ESPELHO DO TEMPO

Quando eu voltei ali os rostos eram outros.

A maçaneta do portão de ferro não me disse nada, mas, ainda que oxidada, senti quando reconheceu minhas digitais como um cão que reconhece seu dono apenas pelo faro.

Gentilmente, então, se abriu e me cedeu as boas vindas.

Voltar ali não me fora nada planejado, me aconteceu por errar o caminho de sempre, talvez algo instintivamente arquitetado, fato ocorrido apenas por um descuido dum cair de tarde calmo e ensolarado, como naquelas tardes das crianças que, entre um pôr de sol e outro, corriam como elas, sem de nada saber, por dentre as paineiras fazendo bolinhas de algodão ou, vez ou outra, a gritar às mães do jardim que haviam encontrado amoras fresquinhas depois de escalarem os pés das plantações inesperadas, as semeadas pelos passarinhos.

Então, riam de si mesmas ao botarem para fora suas línguas malcriadas e tingidas das frutinhas cor de vinho…

De repente, saí das memórias quando mais um rosto passou por mim.

E mais outro…e mais outro. Meu Deus, que lugar era aquele?

Procurei por traços familiares.

Quem sabe resquícios da face daquela jovem senhora gentil, a da paisagista chilena que nos protagonizou as mudas plantadas de tantas belas variedades botânicas, os Jacarandás-Mimosos, os Flamboyants vermelhos , as frondosas Sibipirunas de copas verdes -amarelas, os Ipês amarelos, brancos e rosáceos, das Azaleias floridas em multicores, as que delineavam e atapetavam como se seda fossem, nossos caminhos de todas as heroínas noites já chegadas para o justo repouso das famílias, depois do duro trabalho dos dias fundamentados de vida.

Procurei pelo sabiá das primaveras que todas as manhãs se fazia sentinela nas nossas janelas sem nunca perder a hora…

Tinha voz de soprano…

Não o encontrei. Talvez seu rosto também fosse outro...

De repente, vi o céu se espelhar na água calma da piscina, a que insisti para lhe sentir a mesma de sempre, a que ensinara tantos bebês a darem as primeiras braçadas pelo tempo, sob coletivas gargalhadas efusivas.

Ali, só o céu me parecia o mesmo, indelével e alheio à passagem das horas.

Era ele, com suas nuvens abstratas e voláteis, a própria teoria da relatividade de todas as coisas...

Vi que o sorrateiro lusco-fusco do horizonte colorido parecia lhe acompanhar no mesmo intento de me enganar, nem um raio fosforescente a menos que me fizesse desconfiar das suas reais intenções de só me parecer o mesmo.

Agitei o coração.

Era com olhar para o espelho de algo revivificado, perdido de todas as cenas.

Assim, como se para palpar e desafiar o tempo, resolvi me aproximar do espelho d’água.

Quem sabe tudo ainda estaria ali, refletido e intacto de mudanças?

Nele, mais uma imagem distorcida-mais um rosto eu enxerguei!-o dum ser estranho a mim, projetado pelo vento no balanço murmurante da água e que me revelava algo que também não pertencia ao enredo conhecido.

De repente, o Sabiá-sim era ele!- impossível não reconhecê-lo na mesma tonalidade de dantes, ali tão tatuado na minha memória musical; ele me retomava de mim no seu mesmo canto de sempre: gritou mais alto do que nunca, obtenho resposta entonada dos demais pássaros à revelia de todas as vozes do mundo.

Sabe-se lá de quais mundos reverberavam seus tantos idos cantos...

Foi quando li e entendi o enredo que ali me era ressoado em lírica sonoplastia atemporal:

Projetada naquele espelho d´água, vi a sombra ida do que também já não era mais eu.