Pamela Vânia

Acordei cedo, como de costume, e, como de costume, pensei por dez minutos antes de decidir por me levantar. Já em pé, um copo de café e um Lucky Strike me forçaram a pensar por mais dez minutos antes de me decidir o que fazer com tanto tempo, tanto dia antes da próxima noite. Não decidi, e deitei de novo.

Numa tentativa frustrada e frustrante de passar o tempo sem pensar, liguei a tevê - que assisti sem ver - pensando de que forma encarar o dia que me encarava a partir do momento que desligasse a tevê, levantasse e, aí então, abrisse os olhos, encarando o dia de volta com cara de mau e remela no olho.

Pois bem: olhos abertos, desligo a tevê, levanto, ligo o computador, sento, login e senha, aguarde, aguardo, nada, café, Lucky Strike, login, senha, aguarde, aguardo, caixa de entrada, uma nova mensagem, sem assunto, remetente: ELA:

“Oi... eu sei que você não gosta que eu te escreva, mas é que eu to com uma saudade enorme de mim, e tenho certeza que você também, então antes que você saía por aí rindo pra não chorar, saiba que eu também quero nascer e viver, então, por favor, não se encontre, e venha me ver, só pra que eu possa ser EU novamente, só pra eu possa me encontrar.”

Eu jamais transcreveria aqui ou em qualquer lugar um contato tão pessoal, tão íntimo, sendo a mensagem acima uma interpretação livre, tendenciosa, parcial, porém, de alguma forma, de uma relação muito próxima com a realidade.

Sendo este o único e-mail a responder, o fiz. Sendo mais do que eu suporto por uma manhã, desliguei o computador e segui a vida, com uma espantosa calma, quase me sentindo bem, e sem entender como as pernas não tremiam, como a lágrima não descia, como não batia o medo, o desespero...

Segui...

Alguém cujo nome é Psiu não vai nunca se tornar um analista de sistemas, contador ou tenista profissional, e assim sendo, conheço um Psiu, e por vezes o encontro em algum lugar. Hoje foi passando por um shopping. Eu ia ao banheiro tomar uma água, pra depois sair e procurar o que fazer. Ele tomava sorvete em frente a uma loja de eletroeletrônicos e assistia em uma tevê de 40 polegadas e tela plana a dois sujeitos fazendo malabarismos com bolas de futebol. Ele e uma pequena multidão, formados pro espetáculo babaca do futebol. Eu não.

Esqueci que ia ao banheiro e saí do shopping com Psiu prum cigarrinho sentado na mureta. Justo.

Sempre que fumo cigarros com o Psiu, o assunto vai, e vai, e é sem parar. Desconfio dele.

Conversamos por um tempo, enquanto o sol castigava e os óculos aliviavam, até que ele diz, olhando pra alguém do outro lado do patamar: ‘você me conhece’, ‘oi, Psiu, nem tinha te visto aqui...’.

Ela veio e inicialmente eu me senti só no meio da solidão acompanhada dos dois. Pensei em sair, mas não tive tempo.

‘Pamela’, ‘como? Vania?’, ‘não, Pamela’, ‘ah, Pamela’... (que graça!).

Ela falava como uma criança, sem sequer desconfiar o quanto isso soa puro e belo, e o quanto o puro e o belo da sua voz me fascinavam. Falava sem parar, e quanto mais falava, mais eu tinha vontade de ouvir. E além de ouvir eu tinha vontade de dizer ‘moça, nunca te vi, mas posso jurar que pensei em você ontem’.

Passado um tempo, ela se foi prometendo voltar logo (sim, soa piegas), e voltou. E falou mais, como falou! E como gosta do que eu gosto, como fala o que eu penso, e que decote!

Outra vez ela se foi prometendo voltar logo, e então Psiu e eu voltamos a conversar, sobre ela, tendo todos os outros assuntos se esvaído.

Foi quando ela chegou. Não, não ela, a outra (e não ELA).

Ela chegou e minha surpresa foi tamanha que devo ter feito cara de idiota, porque chegou sorrindo com toda a face, irradiada de uma alegria oculta de quem achou algo tão engraçado que ficou feliz. E que sorriso, que abraço!

Como sempre, conversamos o óbvio, e deixamos muito por dizer, mas como sempre, foi tão bom, que eu chego também à conclusão que uma voz doce torna qualquer assunto motivo pra conversar. E conversamos, como sempre, o óbvio. Quanto a todas as outras perguntas, mais uma vez, vão ficar pra próxima. Ela teve de ir, e eu fiquei. E que sorriso, que abraço!

Não citei que, cansado de acompanhar nossas solidões, no meio da minha conversa com ela, Psiu foi aproveitar a sua. Saiu dizendo que logo voltava, eu mal ouvi, e não esperei; acho que ele não voltou.

Ouvi dizer que o aparelho de raio-x foi considerada a invenção do milênio. E discordo, apesar de não fazer idéia de qual seria a opção “certa”. No caminho de volta pra casa, esse negócio de útil e inútil me fez pensar, porém, em outra coisa: na inutilidade da expectativa, da ansiedade.

Era pra ser um dia tão estúpido quanto qualquer outro que tenho vivido, e sou capaz de jurar que não ia me incomodar nem um pouco. Os dias têm sido iguais, e a resignação sempre foi minha especialidade. Depois de um dia que se quer esquecer de tão vazio, sou capaz de deitar a cabeça no travesseiro, lamentar por um segundo, aceitar e dormir tranquilamente até a próxima manhã quando, às vezes, lamento de novo. E só.

Por isso também não entendo que força obscura faz com que as vezes as coisas pareçam totalmente diferentes do que está planejado com o destino, do que resolvi no fim do ano passado.

O solitário não tem medo da solidão. Pelo contrário: teme a companhia. Porque é a companhia, e nada mais, que propicia a solidão. É preciso estar junto pra sentir o que é ser só, e por isso tudo que o solitário precisa para se sentir bem é um pouco mais de solidão, sem nada que a ameace.

Assim eu voltava pra casa, sozinho e só, ouvindo música e fazendo planos que agora mesmo já não lembro e nunca vou colocar em prática (não que outrora tivesse intenção de praticar; devaneios tolos que eram).

Voltava pra casa ouvindo música e fazendo planos até que ouvi ‘ei’, olhei e era ela: Pamela Vania.

Por um instante, pensei que fosse o calor, a exaustão, os cigarros do Psiu (desconfio dele), mas era ela, e não havia como não ser.

Parei barrando todos que tentavam passar na lotada plataforma do metrô e, ainda que sem qualquer necessidade, a cumprimentei com um beijo no rosto (na primeira vez, não havia ousado), e, ainda barrando todos, começamos a conversar.

Fosse outra pessoa, eu me sentiria ofendido por ter um momento de solidão tão particular assim bruscamente interrompido, mas, sendo ela, não cheguei nem a considerar a hipótese de usar o já manjado ‘to atrasadão, depois a gente se fala’, e fiquei, enquanto ela falava, e como falava, e que decote!

Ela estava na fila pra comprar a passagem, e eu barrando a todos. Pra incomodar menos, me aproximei dela; não me incomodei, ela também não.

Conversamos mais, e enquanto ela falava sobre o a faculdade, o ônibus, o trabalho, eu, sem sequer pensar em responder – e sem haver essa necessidade- ouvia sobre o baixo salário que ela recebia, enquanto pensava se ela também gostava de falar ao acordar, se gostava de dormir de conchinha, se lia Bukowski.

Enquanto eu pensava, ela falava e a fila andava, e eu tinha vontade de dar o lugar dela a todos que estavam atrás e continuar com ela naquela fila por toda a noite. Mentira. Eu queria que ela viesse comigo até minha casa, dissesse ‘eu tomo pílula e to molhada’. Mentira. Queria que ela me levasse pra casa dela e dissesse: ‘eu tomo pílula, to molhada e gosto de ouvir Cartola na cama’.

‘Põe cinco’, ela disse pra mulher no guichê, e nisso eu sabia que logo ela estaria partindo, e teria que seguir meu caminho sozinho e só, e ainda por cima sem ela.

Antes disso, precisávamos nos despedir, e se você estava esperando algum clímax nessa estória, desculpe por avisar tão tarde, mas não há.

Não sabia se deveria beijá-la no rosto novamente ou começar a andar - mesmo a direção já não importava - e então fazer um aceno tímido torcendo pra que numa outra vida pudesse voltar a receber um presente tão belo e tão surpreendente, como todo presente que fica na memória. Comecei a andar e ela puxou meu corpo com uma força tão insignificantemente suficiente, que eu quase cheguei a tropeçar na minha própria ansiedade, me obrigando a segurar nela com mais força do que o necessário. Assim, nossos rostos se encontraram de uma maneira abruptamente doce, e então ela beijou meu rosto com o cuidado de quem beija uma santa no altar. Eu, o mesmo, e nada mais.

Ela disse: ‘eu tenho mesmo que ir; passar em casa e correr pra escola’, ‘tranquilo, a gente se vê’, ‘amanhã’, ‘amanhã?!’, ‘é ... amanhã, passa lá’, ‘beleza, amanhã eu passo lá então; a gente toma uma cerveja’, ‘ou um suco’, ‘combinado’, ‘tchau’, ‘tchau’ (que graça!).

Vim pra casa apaixonado e pronto pra responder o e-mail d’ELA, quando, em verdade, torcia pra que não houvesse e-mail pra responder, pra que eu pudesse esquecer d’ELA novamente e voltar a viver minha vida, permitindo que outras ocupassem seu lugar, permitindo que eu ocupasse algum lugar.

Ao chegar a minha casa, a primeira coisa que fiz foi ligar o computador pra responder ao tal e-mail, e qual não foi a minha surpresa ao perceber que não havia e-mail ao qual responder, o que me encheu de alegria e medo, de carência e saudade. Ela teve a audácia de fazer exatamente o que eu esperava que ela fizesse, e isso me ofendeu imensamente, a ponto de eu acreditar que ela só mandou o primeiro e-mail pra poder nunca responder ao segundo.

As pernas tremiam, a lágrima, o medo, o desespero, tudo junto.

Tudo vai doer até a hora em que eu dormir...

Amanhã eu vou tomar um suco ou uma cerveja lá, e não vou ligar o computador.

(Referência textual: Cartola)