Clarice

Clarice,

Escrevo esta carta porque me é inevitável não escrevê-la. Se assim não o fizesse, outros me leriam do mesmo modo. Não sei porque, mas leriam. Como já sabe, estou de mudança. Na verdade, desconheço outro estado de espírito que não este: estar de mudança. A água quando é congelada ou vaporizada ainda é água. Assim estou desde que cheguei aqui. Clarice é possível que eu também seja água.

Lembro de quando me falou sobre o seu cansaço, sobre a solidão e sobre o seu querer incógnito. Sentimentos perturbadores e estranhamente necessários à arte da escrita. Foi na tentativa de aquietá-los que ousei, de súbito, romper o lacre onde a vida me selara tantas vezes.

Com o passar dos anos e como há de se esperar em qualquer mudança, abri todas, todas as caixas em que acreditei ter guardado as partes de mim. O corpo, Clarice, não serve para embrulhar a alma. Não há um recipiente sequer que a comporte, daí o porquê da vida, às vezes, ser tão apertada.

É incrível como a alma pode ser tão leve quanto a liberdade que tantas vezes me descrevera, Clarice, mas, nós aqui continuamos empurrando caixas de pesos imóveis.

Nunca pensei que embrulhos embalados noutros embrulhos pudessem pesar mais do que os presentes que carregamos para nos dar aos outros e às circunstâncias. Alguns de nós dão tanto de si ao que é alheio que simplesmente deixam de existir. Anulam a própria força apenas para pertencer. Desconhecem o preço mórbido e impagável de quem faz pacto com todos . Poucas coisas, acredito, são tão humilhantes quanto esta.

A morte, Clarice, é o que acontece em nós todos os dias. Uma criança quando nasce vê o mundo pela primeira vez. Nós que já nascemos talvez o vejamos amanhã pela primeira vez.

Espero que tenha encontrado o seu jardim submerso. Espero que tenha que desvendado o antigo mistério do que é o ovo. Espero que tenha reencontrado o materno sentimento que um dia a li ter declarado à Deus.

Assim, quando vir em teu regresso, tendo assumido outra forma d'água, direi a meus filhos, sorrindo, que a esperança tornou a pousar sobre os meus versos.

Poeta Curitibano
Enviado por Poeta Curitibano em 26/12/2018
Código do texto: T6536020
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