Uma Guerra Silenciosa

Nasci em uma época conturbada, um período de transição. Não digo de algum fato histórico ou acontecimento marcante, mas de uma guerra silenciosa que se iniciava, dava suas caras aos poucos, contava os passos, não podia ser percebida, tinha que ser recebida aos vivas e aplausos.

Era final do século vinte, passava as tardes brincando com alguns amigos na rua, uma árvore ou um monte de areia era nosso playground, hominhos, atualmente, figuras de ação, também garantiam horas de diversão. Visitar os avós e ver um episódio de novela mexicana as tardes no sbt também faziam parte da rotina. Interagíamos bastante com nossos pais também, conversávamos, brincávamos, contavam sobre seus dias, suas experiências e nem menciono as famosas histórias de assombração que nossos avós eram peritos em contar. Um friozinho e o crepitar do fogão a lenha eram sinônimos da famosa frase de uma série de antigamente, “senta que lá vem a história. ”

Tivemos a sorte de acompanhar uma mudança de geração, criamos nossa base em uma época e quando menos esperávamos, num estalar de dedos, bem-vindos a era digital. Recebemos ela bem, era algo sensacional, comunicação imediata? Entretenimento instantâneo? Jogos em tempo real e com pessoas do mundo todo? Revolucionário. Diga-se de passagem, que não mencionarei sobre a velocidade de conexão e os avanços tecnológicos, mas somente ao contexto de novo mundo.

Enfim, nossos conceitos construídos ao final do século passado já não batiam, mudaram, se inverteram, plantaram bananeira. Sem perceber assimilamos os novos conceitos de sociedade e cidadania, conceitos esses que atualmente me pergunto se são “humanos”, mas que na época foram aceitáveis. Mudamos. A tecnologia tomou o centro, os valores se inverteram, não visitamos mais nossos avós porque temos que acompanhar as notícias do mundo em tempo real, não apreciamos uma roda de amigos porque não rende boas selfies, não damos atenção a nossos filhos pois precisamos de espaço, não temos empatia pois é fraqueza, e em um mundo canibalesco, fraqueza, é sinônimo de morte.

Trabalho em uma empresa de informática e apesar das várias vezes que já vivenciei isso, não canso de me assustar quando atendo um cliente exaltado porque está sem internet e se não tiver a conexão em casa seu filho vai dar muito trabalho.

Me pergunto onde estão os valores humanos quando uma desgraça acontece e ao invés de vermos mãos estendidas, vemos inúmeros smartphones.

Me pergunto onde estão os valores humanos quando alguém que dá valor a um bom relacionamento, o vulgo cavalheirismo, é taxado de museu.

Me pergunto onde estão os valores humanos, quando o quanto é vem antes do bom dia.

Agora, acredito que não seja só eu, mas quem viveu a transição, se encontra hoje em uma guerra silenciosa, uma guerra consigo mesmo, onde se construiu dois seres, com valores diferentes, e hoje não sabemos em qual concentrar, qual aceitar, qual continuar. Uma constante ansiedade e um sentimento de ausência, como se em algum momento da vida, tivéssemos perdido um pedaço do nosso ser, só não sabemos quando ou o quê, muito menos como restituí-lo. Um ser alvejado com ideias e futilidades, amores e ódios, duas entidades que brigam para assumir a liderança de algo que um dia foi um ser completo.

Não interessa o contexto, mas que estamos cada vez mais nos distanciando da nossa origem, nos distanciando da humanidade. Parece que a “fila da alma” se tornou optativa.