Ricardo Boechat – Espalhem Suas Cinzas

Ontem foi cremado o corpo de Ricardo Boechat. Suas cinzas recolhidas eu gostaria que fossem espalhadas sobre nosso país, sobre o mundo. O que faço aqui, contudo, é analogia, é poesia. Mas que bom seria se pudéssemos fazer sobreviver sua inteligência, sua sabedoria... Que não ficássemos apenas na saudade e lamentando o vazio que ele deixou. Que bom seria se uma partícula de decência atingisse a essência de muita gente desta nação. Que um tantinho de pó de justiça caísse no coração de algumas pessoas sem noção, que se limitam a uma vida sem sentido e se alimentam da miséria de tantas outras. Não me leve a mal se, no entanto, me inspiro no jornalista que não quis ser santo, mas foi profeta pautando sua vida na verdade, compondo sua história com sinceridade e proclamando com responsabilidade o que não podia ficar escondido. Que as cinzas desse homem comedido fizesse equilibrar a mente de tanta gente desajuizada, fizesse purificar tantas opiniões desiquilibradas. Que o vento forte soprasse as cinzas da verdade em um mundo de falsidades. Que outros também tivessem a coragem de ser viventes e não apenas coniventes desse jogo espúrio do “toma lá da cá: Diz o que quero e um presentinho vai ganhar”.

Que a cinza atingisse até irmãos que insistem em religião destituída de amor, que clamam a Deus Senhor, mas desrespeitam os outros sem nenhum pudor. Alguém poderia contra argumentar esta minha reflexão: “Mas tem valor os restos mortais de um homem sem igreja?” “Que pode valer uma vida que o céu não almeja?” E eu respondo com carinho: sem igreja, mas não sem crença, não buscando o céu, mas fazendo a diferença. Sem doutrina talvez, mas não sem fé. Sem missa ou culto, por sua vez, tem razão, mas falando da vida como ela é.

Espalhem-se suas cinzas sobre o Brasil, pois este país precisa de sabedoria, justiça, sinceridade, amizade, ética, verdade. Espalhem-se suas cinzas pulverizando fanatismo, preconceito, opiniões parciais, ideias injustas. Espalhem-se suas cinzas contagiando o país de doçura, humildade, alegria, ternura. Espalhem-se suas cinzas! Cinzas de um homem que foi profissional, colega, professor, formador, amigo, pai, esposo, mas sobretudo ser humano.