E no silêncio que a alimentava estava a sua implicância consigo. Jamais tivera a coragem de avaliar-se sem o peso das ofensas proferidas pelo pai, quando ainda criança, que a via como um peso para sua tão sonhada juventude, em que iniciava a vida acadêmica de direito que deixou pelo caminho como se lhe não pertencesse. Nem pelo desamor disfarçado de falta de tempo que justificava aquela ausência que doía feito dedinho mindinho batendo em móveis, você está sozinha precisa “materializar”. Ela olhava no espelho e via tantas, Marias, Anas, Adrianas, nunca se viu. Olhava para o corpo como se fosse uma carne branca prestes a ser devorada numa festa da família. Aliás, sua família era de verdade até o primeiro copo de cevada ser servido e o banquete era aguardado. Ouvia nos cantos a frase mais temida: eu nunca a quis! Cresceu feito bicho do mato com medo do próximo passo, nunca se entendeu, nunca atendeu a si mesma. Na escola traçava ainda a letra palito quando percebeu que era diferente. Na festa da mãe ia a avó, na festa do pai a chamada era escrito ausente. Quantas vezes quis criar coragem para perguntas ao pai o que era ausente, pois parecia um adjetivo, um sinônimo de ocupado. Naquele dia, ela tinha orgulho! O pai a provia e não a deixava esquecer desde a pasta dente até o lápis escolar. Ela foi se levando conforme o vento a carregava, até que numa tarde de verão, em meio ao jardim de inverno da casa de uma amiga, decidiu se libertar declamando:
Eu sou a metáfora da palavra triste verbalizada sem nenhum critério enquanto coloco a minha dor no pote;
Eu sou o ponto de desencontro entre duas linhas que convergem para a mesma direção mas são paralelas;
Eu sou a sandice mais piolhada de monstros que me foram implantados nas noites frias de tristeza, enquanto escolhia quem era o protagonista daquele medo que viria me assombrar de dentro do guarda-roupa;
Eu sou a verdade camuflada, manchada pela irresponsabilidade juvenil enquanto não tinha escolha;
Eu sou a terra onde plantaram ódio e dor e adubaram com rejeição e destempero.
Eu sou a ilusão mais verdadeira que a humanidade poderia criar, porque apesar de tudo eu quis amar.
Agora venha liberdade! Tome de mim essa contrariedade, não sou quem queria e nem queria ser na verdade, mas já que estou aqui, quero seguir a viagem. Eu não sou, mas estou aqui e venci!
E de longe como se uma plateia inteira a recebesse de pé ouviu as palmas e aceitou a taça com champanhe que lhe traziam para brindar! Aos gritos de Sou inteira, porque me completo, dava uma risada feliz. 
E acordou do sonho. De resto, a vida era a mesma.
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 02/04/2019
Reeditado em 02/04/2019
Código do texto: T6613979
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