Em alguma praça arborizada encarcerado pela liberdade!


     Não obtive ainda a certeza de ter despertado hoje, de ter realmente fitado os olhos castanhos de Atena que (pasmem!) retirou seu véu e, debruçada, ao lado de meu leito, balbuciou-me algo ininteligível (claro, ela não facilitaria as coisas, nunca facilitou mesmo desde que era apenas uma menininha no reino de Hamurabi). Por isso mergulho profundamente nesse lago, sob um luar minguante, sem saber se estou desperto, ou se já me transmigrei na alquimia antropológica ou, quem sabe, reencarnei-me na bioquímica amoral de nossas existências abençoadamente imbecilizadas por um LSD semântico.
     Pensando nisso, um eco de minhas sandices reverberou em minha mente quando eu regurgitei que me sentia patético em meio à modernidade que viola minha naturalidade. Aqui, eu, em meio a esse conceito de ‘ser humano’, rebuscado, crepitando e ardendo nas chamas das contradições (essa Fênix faminta e canibal?) e disfarçando os instintos, sofisticando-os com texturas socializadas para um caminho de imortalidade idílica, um paraíso do qual ainda não encontrei “roteiros turísticos aprazíveis” e tão pouco “agências destituídas de fatores claudicantes”. Enfim, fiquei impaciente demais com aquele balbuciar doce, inaudível, meio sensual de Atena, que percebi o quanto desejava dizer-me algo, pôr alguma luz sobre algumas respostas que eu tracei em meio às sombras, acerca de certas questões impressas no alto-relevo nos meus genes.
     Mas, eu compreendi o gesto dela que convidava-me a sair do quarto naquele instante. E assim o fiz. Saí e tudo estava diferente, era apenas meu quarto e um outro mundo; não havia mais minha casa, pertences, ilusões, nem qualquer doce magia capitalista tingindo minha sanidade. E saí do meu quarto. Ainda incerto, caminhei por entre os eucaliptos, sempre eles! A terra seca, as folhas dançando um ritmo estranho, um vento morno soprando minha face e no fim do caminho uma praça. Um grande espaço circular, uma alfombra verdejante com apenas um banco, belamente talhado na pedra. Então ali me sentei. Ouvi uma voz suave de uma menina me chamando, atrás de mim, pelo caminho ladeado pelos eucaliptos por aonde eu viera, mas olhei e não vi ninguém. Na minha direita havia uma elevação, e um precipício, tenho certeza; eu podia ouvir as ondas do mar quebrando lá embaixo e as gaivotas cantando febrilmente. Na minha esquerda, estendia-se um vale, onde eu só avistava a floresta de pinheiros. Na minha frente, havia apenas um campo, em declínio. Lá embaixo, apenas uma cabana. Nada mais.
     Sentado naquele banco de pedra, fui tomado por um sono incontrolável, e então senti fragmentando-me em cada molécula, cada átomo e em cada fóton. E por um instante, eterno na brevidade, eu era o mar, as gaivotas, o som das ondas quebrando-se nos rochedos, os pinheiros, os eucaliptos e o chamado da menininha que corria sem ser vista por entre os eucaliptos. Eu podia ler nela os pensamentos naquela eternidade breve. “Eu estava esperando por você, porque estou sozinha aqui brincando no meu cantinho de liberdade”. Mas, nesse momento sou apenas o seu chamado, retruquei. “Não, é mais que isso, você é o meu verbo”, disse ela.
     Ainda estou aqui, nesse mesmo lugar, e escrevi no ar, por entre os átomos um longo texto e enviei para mim mesmo, num outro minuto do tempo-espaço, naquela outra instância temporal, na esperança de que um certo outro eu possa explicar o quão belo é essa nova dimensão de liberdade ao qual eu desejo estar encarcerado.
     Meros detalhes, meras perspectivas, apenas eu, sem ego, sem id, em alguma praça arborizada encarcerado pela liberdade.





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Ronaldo Honorio
Enviado por Ronaldo Honorio em 23/09/2007
Reeditado em 21/11/2018
Código do texto: T664865
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