Corpo Sonâmbulo

“O movimento cego de um alcoólatra”; uma sentença desgarrada de um sonho. Mal abrira os olhos, e já com a consciência confusa de haver dormido, flagrei-me pronunciando estas palavras impossíveis, em alguma espécie de delírio. “O movimento cego de um alcoólatra”... O que isso quer dizer?

É certo que durmo pouco. Fui dobrado pela insônia; e quando durmo algo em mim permanece desperto. Talvez eu já tenha declamado minha biografia nesse deslocamento íntimo de meu sono conspícuo. Acordo, quase sempre, no interstício de alguma frase, de algum verso, como se no sono fosse-me concebida a alvorada de uma vida remota. Se isso faz de mim um louco, ou um homem profundamente perturbado eu não sei... Cogito a respeito dessas coisas como quem recobra a vista para dentro de si. Faço do pensamento o avesso de si mesmo, e alço a limpidez de meu espírito incerto, que não me revela nada se não o mundo todo à luz da letargia cardíaca de meu desatino.

“O movimento cego de um alcóolatra”. Essas palavras reverberam dentro de mim, num sentido explicitamente obscuro. Às vezes, pensando nisso, sinto-me espreitado por uma dor, diligente, convulsa... Uma volúpia cruel e precisa, que detesta o corpo. Essa intensidade; esse sentimento; essa coisa... É acre, e me faz salivar. Serro meus dentes como um animal mortífero. Bricomania: a volúpia da crueldade.

Como não restassem vestígios que me tornem a realidade verossímil, já distante de uma distinção real do que em mim é sonho, desfaleço à luz do sol, e me deito sobre a erva como se não me houvesse outra incumbência além de ouvir, respirar, cheirar, sentir tudo à minha volta.

“O movimento cego de um alcoólatra”. Talvez eu seja alcoólatra dos olhos e cego do corpo... Embalo a mim mesmo como a um filho. E o carinho que tenho pelos meus sentimentos, é inexplicavelmente maternal. Sou filho de meus próprios versos, e ao mesmo tempo, estou prenhe de todas as coisas do mundo. Sinto. Há uma tristeza que precede meus olhos. A gente que vejo pelas ruas, todas elas, das crianças a inexpressivas peruas em suntuosos casacos de inverno, figuram em seu transitar pela cidade o transito mesmo de minhas emoções e meus sonhos. E por vezes, deslizando, me choco a elas, e transfiguro-me em nova cidade, novas emoções, em outros sonhos...