Uma dança

Repousavam em vasto silêncio os utensílios arraigados do quarto. Nossos corpos, despidos de roupas, jaziam um feto cálido, unos sobre o leito. Ela levantou-se da cama nua. Plácida, esguia, espreguiçou-se à minha fronte. Ao sentir esvair-me o calor abri os olhos e me sentei na beirada da cama. De pé, ela vasculhava o guarda-roupa; a luz dourada do quarto abraçava seu corpo untado de nosso suor lascivo, e sua pele reluzia em cor fulva. Circunscrevi-lhe o ventre entre meus braços, lentamente fui reduzindo o diâmetro até que meus lábios estalassem num beijo em suas espáduas. Virei-a e deitei minha face em seu abdômen: Estava morna. O calor de seu corpo, já entibiado, evocava o momento em que nos unimos em despudor; e como isso me arrebatasse, tão logo eu estava em pé, beijando-a morosamente.

Dançamos juntos àquela noite. Éramos o pêndulo de um relógio que não mesurava o tempo. Nus, galgamos os cumes de ermos montes abstratos, em uma espécie de liturgia de alma rescindida. Tomamos carona no movimento dos astros, e alçamos silêncios sobre-humanos. Ela pisou meus pés, mas não consumamo-nos em um tropeço. Cada gesto, mesmo aqueles dentre os trejeitos mais furtivos, foi concebido naquele momento como o rigor de uma obra de arte. Somente os artistas me entenderão. Quem mais possui a vida, a cada instante, em opulento acabamento diante de si? Somente aquelas almas eternamente jovens e vigorosas. Ela pisou em meus pés como uma afirmação da própria dança.

Dançamos nus naquela noite. Como algo necessário. Éramos o rigor da vida. O tempo condensava-se àqueles quatro cantos, e os lençóis jaziam as procelas de um oceano. “I’ve got the world on a string...” -Ela Fitzgerald e Joe Pass 1976. Dançamos nus àquela noite, e fechamos os olhos para que a superfície permanecesse lisa. Dois corpos cálidos, paradoxalmente homogêneos, impossivelmente distintos. Contraponto musical. Algo converge em um sentido mais distante que o corpo, como qualquer coisa fluída e indistinta, porém manifesta como o fremir de um ímpeto vital. Duas gotas d’água acrescidas na superfície vitrificada do acontecimento... Dançamos nus àquela noite, como o sonhar de uma criança.