Um claudicar

Estou em uma cafeteria, não muito distante do centro da cidade. Certamente não me detive aqui por um expresso de cinco-reais, nem mesmo para espreitar suntuosas tortas de chocolate de valor estupidamente análogo ao do café...

Sento-me em uma mesa próxima ao banheiro- escolhi esta por me parecer mais remota, menos elementar do que as outras. Cá estou em alguma espécie de retiro ou ritual silencioso. Penso muitas coisas. Recordo a conversa que tive com meu pai, no almoço. Nossas conversas são de certa forma, ríspidas, pois uma conversa com meu pai suscita seu untuoso caráter de advogado. Não há muito que dizer há um homem que acredita no bem, na verdade e, talvez, na alma. Conversar com um indivíduo dessa estirpe, é sujeitar-se por um caminho de armadilhas metafísicas, exigências pseudo-lógicas de uma mente inconformada com o falso, com o engano, com a natureza... Não me estendo muito sobre isso, idiossincrasias à parte.

Houve um momento, antes de meu pai chegar ao restaurante, em que uma breve flutuação de meu olhar culminou na dispersão “ontológica” do que tenho, insidiosamente, de ser. Sinestesia: um deslizar do espírito; um claudicar do corpo, um deslocamento jocoso, ingenuamente canhestro da existência. Titubeava perante o arrastar das cadeiras, o tinir das louças recolhidas... Uma perspectiva ampla de mim mesmo, um recolher-se para fora de si. Aqui, desdobra-se um melodrama furtivo por entre o bulício de gente e de coisas: Há um copo, meio cheio ou meio vazio- abandonado à dispensa de si mesmo; o primeiro ou o último gole de um alguém possível. Concomitantemente, um pequeno grupo de pessoas conversa ao lado, debruçam-se sobre uma mesa cambaleante. Fluxo constante de gente- comboio do meio-dia. A mesa inclina-se de um lado para outro, e como isso comovesse qualquer coisa absurda dentro de mim, minha cabeça oscila à dinâmica ébria da mesa dançante.

Sou afligido de repente pelo pretexto estúpido de um expresso de cinco-reais. Num primeiro momento retenho-me no esforço de tentar reconstituir a ordem de meus passos... Mas tudo em mim é o mais distante de ser verossímil, e a escusa de um café de cinco-reais é estupida, para não dizer uma cobardia, ainda que circunstancial. Tudo isso não passa de uma vertigem, um fugaz desvanecimento da sanidade e das “boas-maneiras”. Curioso é que isso é o bastante para deixar a todos perplexos, pois na sociedade em que vivemos, nada é mais nocivo a estabilidade individual do homem, do que a catatonia. Um devaneio, um novo pensamento, uma palavra “mal pronunciada”, tudo isso é ofuscante aos olhos civilizados.

Entropia: todo sistema sofre deterioração. Dentro desta acepção, eu sou um verme- no sentido parasita da palavra. Deslizo. Passo furtivamente pelo assédio da “boa-conduta”, da moral, à francesa, por assim dizer...

Automatismo neurótico, prática dietética civilizacional, e os loucos como saliências às “linhas turvas de Deus”. Há estupidez o suficiente no mundo para dar cabo do planeta, da humanidade. Pensar nisso me faz cócegas... Mas como tudo isso não fosse mais que um fugaz delírio proveniente de minha exímia falta de educação, sou fatalmente atormentado pelo irrisório expresso de cinco-reais.

Tom Transeunte
Enviado por Tom Transeunte em 15/06/2019
Código do texto: T6673777
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