Fragilidade do Tempo

Fragilidade do Tempo

Thaís Falleiros 19-02-2013

Estava ela no hospital, Velha. Respirando pequenos sopros de vida que poderiam estar de partida num simples segundo.

Sem ao menos dar nenhum sinal poderia acabar seu mundo.

Quando tudo parecia não ter solução, como num passe de mágica, a vida num ato de bondade deu à velha a lucidez.

Era o velho que chegava. Em passos lentos e pesados em seu quarto.

Mesmo com a voz trêmula pela emoção e pelo passar do tempo, a velha o reconheceu. Com olhos fechados, pois as pálpebras já tinham o peso do mundo, ela o ouvia atentamente. E recebeu em seu ventre a cabeça do velho que a abraçou com o corpo e com a alma.

Eles eram tão jovens, apaixonados pela vida e tinham-na nas mãos, cheia de virtude e energia.

E num dia num parque de diversões se conheceram. O coração logo avisou. No primeiro e longo olhar, se encantou.

Ela toda bela, de cabelos presos, longos, olhar profundo, corpo esbelto e carmim nos lábios. Vestido colorido, que lhe mostrava as canelas. Decote discreto, mas que deixava à mostra seu pescoço e seu colo.

Ele, com jeito de moleque, vestia calça jeans e camiseta engomada. Gel nos cabelos e rosto ainda sem pelos. Rodeado de amigos que logo perceberam o calor do amor.

Eram uns dez e colocaram ainda mais fogo naquele momento.

- Hum, percebi o jeito bobo que ficou ao ver aquela linda menina! – Disse um deles.

- Vai lá, mete logo uma conversa! – Disse outro.

- Leva um sorvete, mulher adora! Ainda mais se for de chocolate!

-Mas tome cuidado para não babar em cima dele!

E riram todos. E fizeram mais e mais comentários e fizeram mais e mais piadas e deram mais e mais conselhos.

Mas ele não ouviu nenhum daqueles gracejos. Seu olhar continuava penetrado no dela e a vontade que tivera era de que ficasse assim a vida inteira.

Ela também estava com as amigas. Em menos número e mais tímidas. Mas não menos empolgadas.

- Acho que o Cupido flechou alguém! – Disse uma cutucando a outra.

- Você gostou daquele gatinho? Que jeito de neném!

- Qual? Aquele menino? – Apontou a terceira amiga. – Eu o conheço. Ele é sobrinho do meu vizinho. Nasceu aqui, mas foi para a cidade grande ser aprendiz dos negócios do pai.

- Jura? Então vamos lá! – Disseram todas empolgadas. Menos a menina apaixonada que gritou:

- Não, vocês estão malucas? Eu morro de vergonha.

- Para com isso, sua boba!

E juntas puxaram a garota para perto dos rapazes que já estavam na fila, próximos a chegada da roda gigante. Todas sorridentes, menos a menina que tremia, suava e tinha as batidas do coração agora na boca.

Com a insistência das alegres meninas que a arrastavam com força, mas tentando disfarçar, ela tropeçou e chegou assim bem perto do moço.

Ele era charmoso e cheiroso!

- Quer ir comigo na roda gigante? – Disse o rapaz gaguejando e sem ainda conseguir tirar os olhos dos dela, que não disse nada.

Como uma onda do mar que não se pode controlar, suas pernas (ou seu coração) a levaram junto dele. E naquele momento o sentimento era tão forte e violento que tiveram ambos a certeza de que seria para sempre.

Naquele dia os dois viveram uma história típica de contos de fadas. A felicidade, os sorrisos, risos e gargalhas eram tantos e tão intensos... Não faltava mais nada.

Foram de mãos dadas no carrinho bate-bate, no tobogã, assistiram à uma pequena peça de teatro. E foram finalmente no túnel que se chamava nada mais, nada menos que “Túnel do Amor”.

Entraram num pequeno barco e levados por uma leve correnteza passaram pelo túnel ouvindo músicas românticas.

E como não poderia ser diferente, lá aconteceu o primeiro beijo! Tão mágico, tão verdadeiro! Tão utópico, tão real! Tão calmo, tão intenso! Pareceu que naquele momento eram somente os dois no mundo inteiro.

Anoiteceu e eles foram embora, cada qual com seus amigos já que seria um perigo ele levá-la até sua casa graças aos pais da garota, muito rígidos.

Naquela noite era impossível sequer um segundo de sono. Ela se rodeava na cama e pedia insistentemente ao tempo que a levasse de volta ao passado para viver tudo aquilo novamente. Ou que a transportasse ao futuro para sentir logo seus próximos beijos.

Quando o sol apontou no horizonte, estava ela de pé, toda sorridente.

Era segunda-feira, começo do ano letivo. Ela iria para o ensino médio e não via a hora de estar na escola. Pelas novidades do novo período e claro, pela longa conversa que teria com as amigas em que contaria todas suas aventuras.

Tomou café da manhã com pouca vontade, pois a ansiedade não deixou. Foi de carona com seus pais que perceberam logo a sua energia, mas acharam normal já que era seu primeiro dia no novo ano letivo.

Finalmente chegou e já foi recebida com muita alegria pelas amigas que queriam saber os detalhes de tudo o que ela tinha vivido.

Até que ela olhou para o lado e quem estava chegando apressado era o menino. Na euforia do domingo ele não contou que moraria com o tio e estudaria agora naquela cidade, naquela escola. E o coração da garota foi mais uma vez à boca. Mas ficou parada, estagnada, sem saber o que fazer.

Ele entrou de cabeça baixa e não notou a presença da amada que ficou deveras chateada.

Somente na hora do intervalo ele descobriria a doce coincidência! E no momento em que soube, seu corpo entrou em estado de dormência, tamanha era sua emoção.

Os dois se encontraram no corredor. Com olhares tímidos e tentando manter a discrição. Falaram um simples “oi” e continuaram cada qual seu caminho. Mas ele não foi sem antes lhe entregar um bilhetinho: “Estou apaixonado! Encontre-me no horário marcado, na Praça Baldoso Machado. Lá tem uma estátua, estarei ao lado!”.

Como explicar a euforia que agora acontecia naquele coração? Uma aula nunca demorou tanto a passar e a pobre apaixonada não conseguia prestar atenção em nada do que a professora dizia.

Lá foi ela no horário combinado. E a segunda linda tarde de amor eles viveram! Naquela praça escondida eles começaram a se encontrar dia e noite, sempre que podiam. E sempre era grande o amor, sempre era difícil a partida.

Na escola, apenas amigos! O que também era muito difícil.

Num fim de tarde, começo do anoitecer eles lá se encontraram e se beijaram, como sempre. Mas dessa vez tanto, com tanto sentimento que naquele momento ela sentiu, sem saber explicar, um sofrimento.

Parecia uma despedida.

Ele a segurou firme nas mãos e a deu um anel.

- Este é para marcar nossa aliança que nunca acabará.

Então se levantou e como um cavalheiro a convidou para dançar. Ao som da cantoria das cigarras e dos corações que batiam ainda mais que antes, com inexplicável força.

Depois daquele encontro ela nunca mais o viu.

Os amigos dele não sabiam seu paradeiro. E na escola, disseram na secretaria que o menino havia pedido transferência. Mas ela jamais poderia perguntar para onde. Seria muita insolência.

Foram tempos de muita tristeza. Sentimentos tão opostos. Raiva, saudade, amor, dúvidas, nostalgia, mágoas, melancolia.

Mas a vida continuava e aconteceu o que todos já devem imaginar.

A menina em pouco tempo conheceu outro rapaz, amigo da família, mais velho e com a vida já encaminhada. Um homem de respeito e muito bom sujeito. Não foi difícil dele se apaixonar, afinal ela era linda.

Ela namorou, casou em questão de semanas. E foi muito bem tratada pelo novo namorado. Sempre muito amoroso. E ela sempre fazendo força.

Teve uma vida invejada por muitos.

- Seu casamento foi um lucro – Disse uma amiga antiga – Aquele tal do passado era um coitado, ninguém sabe ao menos um contato. Acho que ele não tinha família, ou tinha outra mulher e filhos.

- Você já perguntou ao tio dele sobre o ocorrido? – Indagou outra.

- Claro que não! O que iriam falar de mim. Ninguém sabia de nosso romance. Agora sou uma mulher compromissada. Seria no mínimo uma confusão.

O fato é que ela nunca soube os motivos para tão repentino distanciamento.

Teve filhos, netos e bisnetos.

Viajou por todos os cantos do planeta. Conheceu Las Vegas, Londres, Paris, Veneza...

E uma inteira vida se foi.

Agora respirando pequenos sopros de vida que poderiam estar de partida num simples segundo. Quando de repente voltou a ficar colorido seu mundo.

Era ele que entrava no quarto do hospital e sua voz mesmo trêmula pela idade e pela emoção pôde ser reconhecida pelo ouvido e pelo coração. Da jovem, senhora e ainda apaixonada.

Ela já não tinha forças para dizer mais nada.

Ele deitou sua cabeça no ventre da amada. E seu filho que o acompanhava deixou-os sozinhos. Saiu também as filhas e o neto dela.

Quando na mão já muito marcada pelo tempo, ele notou a aliança. E foi quando ele chorou como uma criança.

Nos olhos da adoentada também rolavam lágrimas.

- Me desculpa – Disse o homem com a voz agora embargada.

E procurando forças, a senhora já viúva, conseguiu pronunciar as palavras:

- Por quê?

-Seu pai. Descobriu nosso romance. Ameaçou-me. Não me deu nenhuma chance. Meus pais muito ricos e com um nome a zelar me mandaram para longe e não havia mais nada que eu pudesse fazer que estivesse ao meu alcance.

- A lícia.

- O que disse querida? Não consigo entender.

_ A lí ci a.

- Alícia? Quem é Alícia?

- Sua filha – disse a idosa com dificuldade antes de se deixar consumir pela fragilidade do tempo. E deixar o velho num triste lamento (e com uma imensa saudade).

Thaís Falleiros
Enviado por Thaís Falleiros em 16/07/2019
Código do texto: T6697128
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