Cubo emplumado

E seguindo-se pela ruela torta e mal-cheirosa, chegava-se à casa de Pequetita Medeiros Sodré, a viúva de 90 anos que ainda conseguia forças para chegar até a janela.

É complicado imaginar nestes tempos de tanta evolução, a preservação de um costume tão antigo, quanto ficar espreitando de uma pequena janela numa casa de interior, as vidas já bastante mudadas, que passeiam de maneira exibicionista.

Pequetita repudiava com veemência, as blusas decotadas das moças que passavam, que à despeito da lonjura da civilização, também se intitulavam cachorras. Cachorras estas que não demonstranda respeito algum aos 90 anos, passam sem nem ao menos fazer uma reverência que seja. Mulheres que ha alguns anos, seriam taxadas de mundanas e quetais.

Com a mão em seu terço já muito gasto pelo vigor com que manuseava as contas, ela rezava. Não pelas cachorras. Estas já não seriam salvas. Mas por ela mesma, para não cometer o pecado de julgar as condenadas.

Bom mesmo, era no tempo dela, em que uma senhora honesta não se dava a desfrutes de tamanha ousadia. As saias iam até os joelhos e viúva que se prezasse, vestia preto até os últimos dias de vida.

Não bastasse isso tudo, vinham os rapazes atrás. Pessoas sem o menor respeito com seus fones de ouvido atolados dentro das orelhas. Orelhas estas com tantos brincos que em outros tempos seriam confundidos com mouros. Esses moços davam medo à dona Pequetita. Ela não olhava de maneira fixa para eles, pois ela os via como cães raivosos.

Pobre dona Pequetita. Para ela, era terrível ver desmoronar ano após ano, o mundo que ela lutou para entender e que agora não faria sentido algum. Sua casa, tão caprichosa, tinha pinturas estranhas na fachada. letras sem sentido, que para ela nada mais eram do que sujeira. A culpa, com certeza, era da televisão. Coisa que ela jamais desejou ter.

E a reza persistia até as 18:00hs, quando o sino da igreja começava a tocar. Ela se perguntava por quanto tempo mais, aquele sino tocaria. Imaginava que no futuro, do jeito que as coisas estavam, as igrejas seriam fechadas, ou transformadas em mercados . Dona Pequetita sentia um arrepio, só de pensar nesta hipótese.

Sempre que a noite caía, ela fechava as janelas, e ia sentar-se no sofá da sala, para ouvir os antigos discos de Noel Rosa. Um pequeno luxo moderno que ela permitia.

E foi assim, assombrada com este fim de mundo, com pessoas desconhecidas e ouvindo Noel Rosa, que Dona pequetita se despediu do mundo esquisito que se acercou de sua casa. Seu último pensamento foi "Já vou tarde....."

EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 28/09/2007
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