só eu sei me ler

levou um tempo para eu perceber que precisava ser amada

às 6h da manhã

enquanto ouvia blues no sofá verde da minha casa mal iluminada

percebi que eu não tinha uma vida extraordinária

eu era como um livro

desses que a gente para antes da metade

era desinteressante

sai para o trabalho

desamada

um menino entrou na loja

e me olhou com olhos famintos

admirava o meu rosto como se visse nele um livro bom demais para parar na metade

talvez ele visse o que nenhum outro viu

lhe dei um meio sorriso tímido quando o vi oferecendo a boca

senti seu hálito que cheirava a amor verdadeiro

desses que a gente vê em filme

ele tinha rosto de amor

olhos adoráveis

tudo nele era amor

menos a sua risada incontida e inesperada

ele ria como quem ri de uma porca

pensei ser zombaria

mas era o contrário

ele me levava a sério

tão a sério que ficou tenso por entre as pernas

lhe dei dois tapas e soltei três gritos raivosos

fui até o banheiro

me olhei no espelho acima da pia

à meia luz

talvez eu visse o que eles não conseguiam ver

se eu olhasse com calma, eu poderia ver

não via nada além dos meus olhos

grandes demais

saltados para fora

tinha íris

pupila

e toda a parafernália que acompanha

fora isso não tinha nada que os tornassem especiais

a não ser pequenas letras embaralhadas no castanho escuro

difíceis de enxergar

letras que pareciam poesia

percebi que eu não era um livro ruim

todos eles eram maus leitores

levei trinta anos e meio

para perceber que

somente eu sei me ler

e eu sou um poema e tanto.