Deusa urbana

era feriado em meu peito.

compulsoriamente decretado.

talvez seja mais certo chamar de luto. ou estado de sítio. extinto o direito de ir e vir. ninguém mais passa. ninguém mais. era momento de cuidar de assuntos outros, de outras naturezas. sem interferências. além do mais, a última visitante tinha feito muita baderna, e custado a sair. - como se quisesse ficar. - revirou as latas e pichou os muros. quebrou os vidros das propriedades. saqueou covardemente e não deixou quase nada em troca. por isso, trancaram-se indefinidamente os portões.

mas aconteceu que ela chegou. reluzente.

e cagou pra os avisos de proibida a entrada.

encantou os guardas, os cães, a polícia, o exército, o padre e o presidente. 'apenas'. quebrou todos os protocolos de segurança. não pediu licença a ninguém. porque ela é geminiana arretada. ascendente em áries e mercúrio em touro. quem quiser que tente lhe segurar. entrou sim e entrou sambando de salto agulha e batom vermelho. ou rosa bebê, já não me lembro. e - como na música do chico buarque - todo mundo parou pra olhar. porque, não sei se você sabe, mas ela só sobe no palco pra brilhar.

e já chegou ligando o som, tá faltando vida nesse lugar. pegou na minha mão e me puxou pra dança. tava vestida de irmã mais velha ou anjo da guarda, não sei bem lhe dizer, talvez tenha sido de titia velha que sabe das coisas. porque ela sabe mesmo. ou pode ter sido de bruxa também, pajé, fada madrinha, conselheira, taróloga, terapeuta, sexóloga, ou qualquer uma das suas duas mil facetas. chegou assim com um caminhão de alegria pra descarregar no meu quintal. e disse: daqui não saio mais. lide com isso. e bora começar a arrumar essa zona. tira essa cara de enterro, bota um sorriso, queixo pra cima, prende o cabelo e aperta o cinto que eu vou te fazer voar. ei, tem medo não, segura na minha cintura e confia. vai ser uma viagem da porra.

e assim tem sido. me despi dos medos e aceitei a carona. então ela abriu suas asas e seu coração e me levou com ela. abriu também sua vida, sua casa, seu livro de histórias, seus amores, seu passado, suas feridas, suas vitórias. se abriu inteira pra mim. e tenho me deliciado nessa troca como criança em parque de diversões. fechando os olhos e sentindo o vento. me sujando na maçã do amor e no leite condensado da pipoca. me deslumbrando com as luzes. parando o tempo no ponto mais alto da roda gigante pra olhar a cidade de cima e me perguntando se poderia estar mais feliz.

e fiquei demente. deliciosamente demente. hoje, com essa lua em câncer, me sinto profunda e irreversivelmente demente. chega a doer. já não tem lugar pra essa saudade que deita em meu cangote e arranha minha nuca como um gato gordo e mal humorado. entendidos dirão que é disfunção de neurotransmissor. poetas dirão que é o ápice de se estar vivo. eu, ariana-pisciana, feita de fogo e filha das águas, de minha parte só quero mergulhar cada vez mais fundo nesse oceano e me enrolar em seus cabelos de sereia esotérica. que são os mais lindos. assim, despenteados e irritantemente molhados, caindo desajeitados sobre o rosto de um jeito só dela. quero tomar um café ao seu lado e sorrir apaixonada com a sua carinha de cachorro que caiu da mudança me olhando com esses olhos que me fazem jurar o que ela quiser.

e voar.

segurar em sua cintura e voar.

me deixar cair em seu néctar e ficar, como um inseto capturado. chorar em seu peito, brincar de tentar te adivinhar e de decorar seu desenho. me surpreender todos os dias com suas multiplicidades, sua sede infinita de aprender e ir mais longe, sua sabedoria de alma milenar, sua bondade incondicional. me encantar com sua leveza de pássaro sem dono e seu coração libriano sem limites para multiplicar e distribuir amor. seu colo canceriano que até faz esquecer do que era que tava doendo.

só quero estar. estar aqui, ao seu alcance, pertinho, disposta a pegar um uber e correr pros seus braços qualquer dia qualquer hora. estar acesa, inteira e sempre pronta pra incendiar o mundo com nossa intensidade bruta (adj.: de grande dimensão; desmedida; intocada, inalterada, desatinada). nossa intensidade juvenil.

nosso amor inflamável.

nossa falta de limites.

nossa chama.

gêmea.

(outubro, 2017)

* Referência utilizada no título:

https://www.youtube.com/watch?v=rosxNEmgBxQ

Marina Borges
Enviado por Marina Borges em 30/09/2019
Reeditado em 23/04/2020
Código do texto: T6757935
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