Exéquias

No caixão, seu rosto era de mulher brava. Olhos severamente cerrados, como aqueles que se fecham de propósito: indiferentes a qualquer tipo de sentimento.

Para quem viu aqueles olhos abertos, em vida, nenhuma novidade acrescentara ao semblante dela. A cor da pela era a mesma, ou seja, de quem esqueceu o que é o sol. Cabelos grisalhos e descuidadosamente presos. Traços finos e hostis. Boca pequena e levemente aberta. Nenhuma palavra. O que se ouvia era um resmungo fosco de uma alma que doía demais.

Nunca imaginei que alguém pudesse se esquecer de olhar. Embora enxergasse muito bem, ela não conseguia mais ver. Seus olhos careciam de expressão. Não eram tristes, não eram alegres: eram ausentes... Mesmo fitando-os bem de perto, seus olhos não alcançavam os meus. Caiam no abismo da falta de sentido.

O velório condenava para sempre aquele pedaço da casa. Na sala, lágrimas isolados, que tentavam compreender o inevitável destino. Almas perdidas no remorso. Vidas enroscadas na incerteza de céu e perdão.

Pobre corpo. Ter como sentença a eternidade do próprio leito. Amarga pena, ser o centro das atenções fúnebres.

Ela fez daquele momento o seu maior e mais enfático discurso. No silêncio do seu funeral perfumado de velas e crisântemos, ela deixou transparecer a frase de sua lápide:

“Ao menos agora, quero ser dona da minha própria morte”.

Mauro José Ramos
Enviado por Mauro José Ramos em 05/10/2007
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