Ah! Se o meu heterônimo pudesse ocupar o meu lugar!
 
Ah! Se eu pudesse me livrar do meu pesado “estar a ser”, mais leve seria o fardo que subjuga o meu viver...
 
Não se chega ao fim, sem antes partir do início, logo, pelo intento que tenho de levar esta página, ou antes, esta tela ao seu epílogo, inicio com esta interrogação a mim, mas, que a outrem pode alcançar:
Quais as razões que podem levar um escritor a conceber, gerar, e dar à luz um heterônimo, para que esse se torne senhor das suas letras, as do escritor? Tantas razões há, que não conteria o desejo de julgá-las; contudo, ainda que sejam várias, nem todas poderiam por mim, ser bem compreendidas, assim, me atenho a não mais que três delas, logo, sem maior dificuldade, as citarei.
Sem mais tempo a perder, ou a ganhar, antes que eu justifique a existência dos heterônimos, tenhamos em mente que toda e qualquer pessoa, em algum momento de sua vida, poderá se ver portadora de uma doença, entre tantas que há; essa afecção evoluirá bem, esvaindo-se para sempre, ou, de forma vária, insidiosa, contudo adversa, após algumas intercorrências, ao se agravar, resultará em um prognóstico reservado, qual seja tornar-se-á sombrio e crônico, até que a morte lhe dê termo, não à afecção, mas, ao seu portador... Contudo, entre aquelas doenças, encontra-se uma sem jaça, ímpar e imparcial, pois poderá acometer, sem quaisquer distinções, quaisquer pessoas, ainda que estejam em princípio, hígidas; por ser tão singular, quando essa enfermidade, em firme idade se instala, ou seja, quando ela acomete uma pessoa que já tem consolidada a sua própria identidade, ela — a afecção — poderá encerrar em si uma doce elação, ao suscitar, logo de início,  em sua vítima, um forte desejo de se despojar de si, para em si acomodar outrem...
Antes ainda de alcançarmos aquelas razões — as que levam uma pessoa a conceber um heterônimo para si — desviemos de seu caminho natural algumas palavras, para usá-las à definição de síndrome: síndrome é o conjunto de sinais e sintomas que caracterizam uma enfermidade; a ser assim, se há alguma pessoa que queira mudar a sua própria identidade, ao criar para si um heterônimo, sem nenhum esforço imposto à mente, poderemos afirmar que por demente alguém poderá tomá-la, entretanto, se essa pessoa estiver cônscia do seu próprio siso, não criará para si, um heterônimo para atender a nenhum espúrio desígnio, tão somente o fará para que ele — o heterônimo — assuma a sua obra — a obra da pessoa que o criou — pois, heterônimo não passa de alguém, que não passa de um ente da razão destituído de quaisquer ambições próprias... O novo autor, ou antes, a criatura que haverá de ocupar o lugar do seu criador, para sustentar o seu próprio brio, brilho próprio haverá de ter, através de um perfil bem definido, que bem poderá se assemelhar ao do seu senhor, ou, do dele, muito se distanciar, ou ainda — o que menos usual não é — é o autor substituto se tornar tudo que o seu criador muito gostaria de ser. Quando essa última conjunção se dá, ou seja, quando a criatura por tão mais aprimorada que se tornou, ao tomar posse da obra do seu criador, amiúde, poderá deixá-lo com algum resquício de inveja, com efeito, um tanto ressentido por tê-la criado, poderá ele ficar...
Agora sim, cheguemos às razões que levam alguém que lida com as letras, a criar um heterônimo para si; são elas: o desejo, de início, de não ser atingido pelas críticas; se livrar do assédio dos seus leitores; por fim, pôr fim a outros incômodos menores, porém maiores em número... Depois desse relato, sem óbice, imaginamos a singularíssima conveniência que há, quando alguém cria para si um heterônimo, contudo, ainda que disponha de todos os recursos indispensáveis para levar a termo a sua gênese, se esse alguém, pudesse dotar a sua criatura com o poder da fala, fazê-lo, logo viria; e logo se veria, com muito gáudio, por esse seu ato, bem compensado, pois, poderia ouvi-la dizer:
— Fui criado à tua imagem e semelhança! Entretanto, ainda que muito semelhante ficasse, diferente haverei de ser, mas, mais me aproximarei de ti, quando puder te demonstrar com toda sinceridade que tenho, a minha gratidão; e isso farei, quando for possível, te dizer: — não só me limito a adotar a tua obra, mas, assumo também de bom grado em teu favor, dois grandes ônus que sufocam quaisquer entes humanos, quais sejam a anuência compulsória que se faz ao pagamento dos tributos e o obrigatório convívio social imposto a qualquer pessoa quando entre os seus pares se encontra; e para que o senhor e meu criador entenda bem a dimensão do meu sacrifício, sabe: esses fardos vêm sempre unidos, não se separam jamais, uma vez que, de vez, o viver de um, depende da vida do outro, a despeito de os  percebermos distintos entre si, quando nos impingem o seu peso, pois aquele aniquila o corpo, e esse subjuga a alma. Vê meu senhor! Quão mais feliz seria a criatura humana, quando não felicíssima, se pudesse dizer de si: — desci ao rés da minha resistência, subjugada por dois insustentáveis ônus, mas agora, por graça recebida, sinto que tenho força e poder para deles me livrar!
Estava a sonhar com essas palavras do meu heterônimo, quando caí à realidade para tocar nesta cruenta verdade:
A certeza que tenho, para outrem, poderá carrear dúvida, ainda assim, ouso, por todos os semelhantes meus, contudo, antes por mim, admitir: ainda que não alcançássemos aquela graça, creio que não seja possível haver ônus maiores que aqueles dois, a nos deixar mais tesos, com os seus pesos; e são tantos que não há, que se houvesse, seriam capazes de acercar as lindas da imaginação... Ainda assim, estou indeciso, não quanto a possibilidade de me livrar daqueles tributos, mas sim, quanto ao convívio social, pois falta-me evidência para contestar a sua conveniência; a ser assim, tenho certeza que pelo menos uma dúvida não deixarei de ter, e aqui, em forma de interrogação, quero mostrá-la àqueles que me leem, pois sua, ela também poderá ser.
Neste momento, por imposição deste texto, abro um primeiro parêntese, que ao se justificar, justificará um segundo, ou até outros, caso necessários sejam; ei-lo logo abaixo, queira vê-lo!
“Ao abrir parêntesis, amiúde, quebra-se o texto que julgamos falto de reparo; ao fazê-lo, zelo maior haveremos de ter, pois, muita vez, subestima-se o raciocínio de outrem, ou remenda-se o nosso próprio que fora puído”; sob esse, e não sob aquele efeito, é feito aqui, por ser necessário, um remendo. Entre estas letras, o faço pela primeira vez, mas, já o fizera antes em outros lugares e momentos; assim, caso seja imperativo, para conservar o hábito velho, de novo, em algures, fá-lo-ei. Pois bem, sem constrangimento, tolere este parêntesis que se segue, pois o faço por minha conta, logo, logo, ou desde já, estou a remendar o meu próprio raciocínio que fora trincado...
 “Há alma solitária, que assim quer ser, na esperança de evoluir por si, para em seguida, só para si se voltar, quando então, colherá sem dividir com os seus pares, os frutos da sua própria solidão?”
Se por resposta a essa indagação, há quem, sem dúvida, possa dizer que sim, todavia, para mim, com toda certeza, duvido que tal existência haja, logo insisto, ao fazer àquele alguém, mais estas duas perguntas: em algum momento, quando a tua alma estava solitária, triste tornaste? Ou tornas-te trinte só quando ao lado de outros semelhantes teus te encontras? Uma vez que, neste momento, de nenhuma pessoa entre todas que estão a ouvir as minhas palavras, nenhuma resposta ouço, ouso ainda dizer: é mais seguro e menos doloroso, que eu me resigne, pelo menos em parte, ao tolerar o convívio social, que seria insuportável, se não estivesse eu sob a égide de um heterônimo; contudo, ainda tenho um grande receio, qual seja, heterônimo é sempre desalmado, ou antes, é sempre destituído de alma própria, e para que assim não seja, alguém poderia lha emprestar; mas, convenhamos, isso não é possível que se dê, pois, nem sequer eu, que dele sou o criador, ainda que o quisesse, não poderia fazê-lo, porquanto nem da minha própria alma posso dispor... A ser assim — e que esse ser não seja para sempre — não há esperança de vida livre nem mesmo para um heterônimo, pois ainda que ele se encontre desvencilhado daqueles jugos, impedindo-o para consolidar a sua plena autonomia, há amarras que lhe tolhem algum movimento, quais sejam, aquelas que estão bem à mão do seu criador e esse podem atá-lo, em qualquer tempo e lugar; e o que é pior, este mesmo criador sentindo-se responsável pelo que criara — o seu heterônimo — sob os grilhões desse, também se encontra.
Depois desse último parágrafo, sem prejuízo à clareza do remate destes dois últimos, posso dispensar novos parêntesis, ainda que parentes bem próximos, pois são irmãos siameses — a incongruência e o paradoxo — clamam por um espaço distinto para melhor esclarecerem a conjunção incestuosa que estão a formar; pois esse casal compõe um nebuloso conluio, com a intenção se meter entre o criador e a sua criatura; e isso concluo por isto:
Muito embora aquela criatura — o heterônimo — seja virtual, goza de uma grande liberdade, porém vigiada, visto que o seu criador teve liberdade e autonomia plenas, que tanto desejara para si, para concebê-la, gestá-la, e em seguida, tão logo nascera, dominá-la; e agora, por gratidão ou por temor, ela — a criatura — se torna dependente do seu senhor, e esse por se responsabilizar por quem criara, ainda que possa destituí-la de todas as insígnias que lhe dera, não tem poder para lhe retirar das mãos, através da aplicação de tão dura pena, a pena — razão primeira de ser o seu heterônimo — pois se assim o fizesse, menor liberdade ainda teria, ao se tornar novamente, senhor único da sua própria obra; a ser assim, depois de trabalho de sobra e sem falta de frustrações, pela liberdade que buscara, o criador ouve de sua criatura:
— eu valho por mim, pois não desgastou meu físico o fisco, e não corroeram minha alma as armas dos meus semelhantes; assim, vivo na minha essência, que para adquiri-la nada fizeste, logo, de ti tenho pena, pois a pena que tenho à mão, de Outro recebi, embora, pensas que ma deu de presente...
A ser assim — e que esse ser não seja para sempre — não há esperança de vida livre nem mesmo para um heterônimo, pois ainda que ele se encontre desvencilhado daqueles jugos, impedindo-o para consolidar a sua plena autonomia, há amarras que lhe tolhem algum movimento, quais sejam, aquelas que estão bem à mão do seu criador  com as quais poderá ser atado, em qualquer tempo e lugar; e o que é pior, esse mesmo criador por se sentir responsável pelo que criara — o seu heterônimo — sob os grilhões desse, também se encontra. 
 















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Eugene Garrett
Enviado por Eugene Garrett em 18/01/2020
Reeditado em 19/01/2020
Código do texto: T6845041
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