O eu impessoal

Texto baseado em desenho nosso, disponível em: https://www.facebook.com/Inconsistencialiteraria/photos/a.112055416877677/156142915802260/?type=3&theater

Não seja deles nem se as estrelas caírem do céu, apenas esqueça aquilo que lhe disseram, e se deslumbre com os reflexos no horizonte até que os rios sequem. Em outras palavras, no início do fim permaneça de orelhas em pé, semelhante aos animais astutos, captando os ruídos inaudíveis, observando rastros e farejando as migalhas da linguagem.

O sol infinito vai escurecer, seu brilho reluzente irá se tornar obscuro, e aqueles olhos de areia ainda vão estar lá, impassíveis, admirando algo lindo e incapaz de ser compreendido.

Na algazarra da multidão não estamos ao lado de ninguém, contudo nunca sozinhos, afugentados pelos grandes entulhos de nada que preenchem o mundo. Todos os dias uma poesia se acende, nos lembrando que até os poetas delirantes padecem e esgotam suas rimas.

Quando dois mais dois forem três, estaremos no apartamento colorido, vendo um filme ao seu lado, no qual, o carro do protagonista despencou do penhasco. Sem protagonismo, tentamos realizar o exercício dificílimo de captar a cor das cores inomináveis do desejo. Aprendemos com o velho corcunda: o clamor do corpo é inevitável, quando compelido percorre todas as veias da cidade ansiando por diamantes viciosos.

Faça uma gentileza, quebre nosso nariz cubista, Picasso ainda cria telas no jazigo úmido e silencioso. Escutando suas unhas arranhando o caixão, você é mandado embora do cemitério pelo coveiro ranzinza. Ele diz de forma tranquila: as catedrais foram incendiadas.

Amarre fios prateados naqueles cabelos enormes enegrecidos pela fé cega; por que nos interessamos tanto por mapas e cartografias do desejo alheio? A faca está amolada, antes de sair, olhe para seus pés, os cadarços foram cortados, mesmo assim você permanece atado. A sabedoria se tornou uma carga, tanto quanto as sacolas que alguns ostentam orgulhosos, como signos de sua sucinta grandeza.

O eu impessoal se dispersa em cores, ri da parábola da palavra, entrelaça manchas de suor frio, traça caminhos sinuosos por entre as frestas do templo iluminado. Pois, sabemos, o milagre é caprichoso, sempre existe certa probabilidade de eventos imagináveis não acontecerem.

Esqueça outra vez aquilo que era, virando do avesso suas memórias, fazendo acampamento provisório nas casas de vidro que lhe observam. Rosto sem face, construído com rebocos multicoloridos, insólita mansão imaginária carcomida pelos desgastes do tempo.

O espectro está aceso, suas cores dançam contrastando disformemente, desenho visceral se inscrevendo em nossas vísceras. Imagem desenhada por mãos insolentes, com unhas roídas e cicatrizes, que se diverte cortando rosários. Folha de papel transfigurada em furacão, demonstração inútil do poder da usina nuclear do inconsciente.

Com que cores você colore suas fachadas? Quais são suas cores de predileção? O eu impessoal vê suas respostas ao longe, com desdém, pois é desfigurado, inominável e sem identificação. Não tem compromisso, tampouco responsabilidade, é o estranho movimento de desvinculação de si mesmo.

Espécie de multidão disforme de fantasmas assombrados tragando almas perdidas. Vozes destilando sussurros enquanto empilham escombros no limbo do desejo. Decerto que um dia qualquer, com nuvens tempestuosas e beijos, o sonho nos espera do outro lado, sem medo?

Daniel César — Natal, 18/01/2020.

D César
Enviado por D César em 20/01/2020
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