SUL= Suas Últimas Lembranças

Sou marinheira em mar de morros, planaltos salgados de vastidão verde e campestre. Se já comi semente de cedro? Para falar a verdade sou tronco de araucária fincado em solo fértil e irradio o amarelo de meus ipês. Minha terra cheira a erva mate em cuia enquanto dança ao ritmo da vanera, a madeira de meu berço foi talhada pelos caboclos, os mesmos que esculpiram no mármore de suas sepulturas a luta por seus domínios. Oh pobres nativos, nunca aquiesceram ao mercantilismo atribuído a um trem, em suas veias latentes pulsa o sangue puro das américas, as cicatrizes do Contestado ligam-se por uma malha ferroviária que descarrilha a máquina à vapor diretamente em suas memórias até o fim dos registros históricos. Suas algemas já são aço e seus caixões não são revestidos de madeira de lei.

Vales e ventos delatam Saci, peneira de farinha das donas de casebres de fazenda e rolha de vinho das safras nos vinhedos, furacões assolam o lar, não daqueles que fumam cachimbo, mas sim dos que sacrificaram não apenas uma perna, mas uma vida no Velho Mundo e agora aqui estão com suas famílias e campos colonizados. A onda bélica abarrotou navios de refugiados e obrigou milhares de sonhadores a cruzar o Atlântico rumo ao novo continente: colorido como os cocares e as araras matraqueadoras.

A sinfonia gorjeante atinge o ápice na alvorada, quando quero-quero ouvir uma araponga, tarde demais, descobri que o som do martelo batendo em uma bigorna foi confundido pela cacofonia no raiar de uma porteira no sítio vizinho, cenário típico de Alencar em “O Gaúcho”. O que dizer da miscigenação dos povos? quais cores, costumes e crenças queremos que constem em nossa identidade cultural? Europeizamos tudo o que chamávamos estrangeiro, trouxemos muito em nossa bagagem: o Coliseu, o Portão de Brandemburgo e o embrião das máquinas, infelizmente, esquecemos de trazer o senso de humanidade e a compaixão étnica. Exterminamos a “raça” indígena, excluímos o passado dos ancestrais dessa região paradisíaca, restringimos sua liberdade às lavouras e no final lhes demos espelhos, para que se deparassem com o próprio rosto desafortunado.

Pulava no pau-de-fita e cultuava os deuses, até a Guerra dos Farrapos, após a Revolução, bastava um nome, Anitta Garibaldi, e estava feita a religião. Imperadores das palavras que incendeiam corações, dos úteros sulistas nasceram Mário Quintana, Luís Fernando Veríssimo e Caio Abreu. Das vozes desse solo ecoaram os silvos de Elis Regina e Alcino Alves. O Rio Iguaçu desembocou na Bacia do Rio Paraná, as águas se misturam onde três nações fazem fronteira, em um espetáculo hidrográfico. Terra definida por diversidade, história e identidade. Eu sou a solidez dos pinhões paranaenses, a exuberância da Laelia purpurata catarinense e a grandiosidade dos pampas gaúchos.

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 17/02/2020
Reeditado em 31/10/2021
Código do texto: T6868419
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