Matizes das horas brancas

Qual a profundidade do abismo em que os rabiscos coloridos, os recortes perfeccionistas e as palavras desbotadas de tanta poesia, cairiam, se o tédio não banhasse as tardes, se a quieta solidão da noite não ousasse levar tudo o que é sensível rumo à luz? Simplesmente, deixe-se entediar, eis o remédio de todo aquele que não se julga criador de sonhos e dimensões. Busca, porém desconhece onde procurar. Saberá um dia onde encontrar este antídoto? Apenas quando deleitar-se no tique taque insistente das horas que considera improdutivas, apenas quando a agonia do vazio e a ausência dos afazeres tornarem-se suas aliadas, pois há penas para tudo: cochilar, observar, apalpar, sofrer de dó e aquela que manchada de tinta escura, sempre encarou o precipício dos desejos, das dores sombrias e da fúria negra das paixões.

As palavras enxergam seu destino nas manhãs de um dia corpulento, quando uma senhora cambaleando de dores antigas, sente de súbito, um desespero, uma saudade de si, uma réstia de lembranças da menina que a habitava. Já não suportava a indiferença dos dias,a fugacidade dos minutos apáticos, a loucura tenebrosa de uma vida longe de estrelas que acendem no papel e iluminam a alma. O coração literário pulsa vigoroso nos dias sem fim e noites agitadas de verão, quando o sol mais resplandecente é o brilho de olhos jovens que impedem o atrofiamento crônico das letras mágicas, e o calor que envolve a classe nobre que perpetuaram a escrita, jamais acalenta meros sobreviventes de um mundo mesquinhamente ocupado.

Sacrifique compromissos fúteis em sua pequeneza e dê-te o luxo de desfrutar de si, de travar batalhas contra seus fantasmas e conhecer as versões mais inimagináveis de você. Salve seus eus de um colapso enquanto ainda há tempo. Fazes ideia de quantos já perdeste? Imaginas quantos ganhaste desde a primeira pergunta que induziu seu mais subjetivo eu a ler até este ponto? Pois vos lhe digo, não haveria palavras dançantes, palavras puras e esbeltas nesse pedaço de folha murcha, caso o tédio, e somente o plácido, sublime e retumbante tédio não refletisse estes anseios, provavelmente não teríamos nos encontrado agora, talvez fosse apenas mais um eu dentro de mim.

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 24/02/2020
Reeditado em 31/10/2021
Código do texto: T6873071
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