Velho amigo

Visitaram-me e conceberam-me companhia em madrugadas inteiras pensamentos embaçados, numa súbita fixação, um vislumbre a alguns anos passados, capítulos perdidos de uma história ainda escrita. A voz ecoara distante e a ouvi como um sussurro de agora, sua exaustão abafara suas palavras, e assim como minhas respostas, desprovidos de compreensão estes diálogos me adormecem na inquietação de cada noite.

Ele, uma constelação de pontos desconexos, instável na gravidade hostil, à deriva e em constante afastamento de minha vista.

Meu amigo havia deixado para sempre sua cidade natal, encontrou seu próprio espaço monumental a um preço barato de um apartamento alugado, algumas garrafas de vidro meio cheias e meio vazias espalhadas pelo chão como rastros de sua existência entre aquelas paredes apertadas.

Ele não tinha um nome, não tinha uma face, não escolhera ter uma vida, não tinha ponto futuro seu em minhas memórias além de retratos empoeirados e confissões versificadas guardadas em gavetas velhas de um armário caindo aos pedaços.

Dorme numa cama confortável e é acordado pela ordinária luz radiando em dias da semana? Aposto que ainda escreve prosas em tardes descompromissadas, escuta as mesmas músicas, lê e relê o que sobrou de clássicos atemporais em sua estante de livros. Mira-me em sonhos, afoga-se em sua poesia, e se pergunta o mesmo sobre mim?

Seja lá o que o levou turbulências imensuráveis assim como incontáveis, tenho certeza de que ainda tem problemas de insônia, ainda farda fadiga em seu corpo, ainda se recusa a acordar quando o frio o envolve como um manto protetor, ainda é jovem, ainda não envelheceu sequer um dia.

Enigmático, frases incompletas e planos abandonados tecem os mistérios deixados como maneiras de encontrar o que sobrou de seu todo. Conversas que nunca teremos, ainda aguardo e almejo que reciproque o que fora deixado à ambiguidade de um fim súbito onde não residem conclusões.

Você é um adulto agora, esquecera-se de minha presença, desaprendeu os significados de seus próprias metáforas, proibiu do Sol de lhe tocar em piedade e revelar o que te esconde a escuridão ao seu redor, desistiu de tentar mudar o rumo que o lhe amaldiçoa até seu epílogo. Oculto de minha visão, apenas mais um organismo decadente, desamparado e insuficiente aos últimos suspiros de consequente depressão e incurável vício.

Daniel Yukon
Enviado por Daniel Yukon em 07/03/2020
Código do texto: T6882359
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