Qual seu pior pesadelo favorito?

Continue falando daquilo que não sabe, sentado na mesa esfarelada por cupins você pesca o sono, corpo quase estático, maltrapilho incapaz de dizer o nome próprio. Você espera, desapropriado, possuindo apenas um casaco velho cheirando a mofo, vestido na intenção de disfarçar sua camisa amarrotada por ressentimentos.

No dia 27 de junho de 1890, em frente aos campos de trigo dourados, aquela mão trêmula encravou chumbo contra o próprio peito. Gesto tão racional quanto decepar uma orelha. No céu azul escuro, os corvos voaram após o estrondo da pólvora no espaço, com o corpo tombando ele pensou: não será o pesadelo da arte, o surreal arrebatamento diante das volúpias da morte?

Somos tinta, mas o tempo é solvente. Persistimos em beber o tinto turvo, no entanto, seu sabor amargo se mostra incapaz de saciar nossa sede incontrolável. De certo modo, devemos ser somente isso: uma espécie de tumulto de recordações devorando os dissabores do passado.

O retrato que um belo dia foi fúlgido, hoje se desvela desbotado pelos invernos. Absortos, lemos que Rimbaud riu quando arrancaram sem anestesia sua perna apodrecida: pelo visto, não é necessário calçar um par de sapatos, para contrabandear armas e escrever poemas ébrios no inferno gélido.

Levanta-se e feche seus olhos, sonhando você percebe que todos estão como sonâmbulos no pântano das posses. Criaturas narcísicas engolfadas no piche do sonho inconsumível. Ansiosamente esperam aquilo que não possuem, como se, fossem, bichos com olhos esbugalhados; salivando perante vitrines de pedaços suculentos de desejo.

Rolando na cama, os pensamentos cortam o vazio como uma tesoura cega; não sobrou muito para se amar, hoje é um dia cansativo para se odiar. Olhando de modo desfocado, vemos um óleo sobre tela aterrorizante: um anjo com o rosto repleto de fungos aperta entranhas que gritam agonia.

Diante das multicores do medo, o corpo desfalecido busca saltar desses sentimentos movediços. Entra em efusão, se excede; ao se ultrapassar no abraço em que a solidão do ser se perde. O resto não importa, a máquina retroalimentável continuará realizando seus piores pesadelos favoritos. Não interrompa o processo, assim ordena a lei.

Na luminescência do dia, o cadáver do pássaro proibido traz perplexidade; nossa carne é instituída por uma descrença intangível nas plumas da alegria. Com o sol massacrando suas pálpebras, você pensa numa pergunta cálida: será que realmente o despertador nos despertou?

Acordamos enlaçados por outro pesadelo, no qual, a literatura é a carne do silêncio, e nós açougueiros; trajando aventais banhados em sangue autoral. Sem saber ao certo onde estamos, cortamos nossos escritos no limite do interdito, uma arte maldita, transgredindo o cálculo utilitário do bem comum.

Pois é notório na cara sonolenta de todos: a sociedade só quer fazer durar o sonho americano. Duramos apenas o suficiente: o instante amaldiçoado de uma palavra dita. Deixamos o palácio da arte de forma soberana; virando as costas ao rei nu. Insistimos em remoer escritos, não para entrar no reconfortante ar-condicionado de uma farmácia, mas antes, sentir o incômodo das moscas da literatura entrando pelo nariz.

Olhe seus pés, você está de ponta cabeça, pendurado pelo gancho da palavra. Desnorteado, carne marcada pela lei; de segunda, raciocinando uma fuga do abatedouro social. Perseguido por pesadelos surreais, manquejando, tenta desesperadamente, encontrar uma luz no fim do túnel do sonho. Contudo, convenhamos: na provisoriedade do espaço imaginário do pesadelo, não são dispostas sinalizações de saídas de emergência. Os degraus do labirinto ilusório sobem e descem em todas as direções. A esperança apenas se perde.

Antes dos calendários cósmicos, uma besta descomunal tomou nota de uma profecia desconexa: dois meninos brincam de teatro na mansão permeada por adornos familiares. Seus cabelos penteados de lado, perfeitamente lisos, curtos e negros, reluzem na tonalidade do tecido aéreo noturno. Um deles segura uma pequena espingarda de brinquedo, o outro, apenas um chicote tímido de couro envernizado.

Atuavam levando sua dama de companhia no papel de refém de guerra. Ordenando que ela se ajoelhe e encene sua própria execução. Leram uma pequena sentença e atiraram em sua têmpora. Questionaram-se com crueldade e inocência: mamãe vai ficar brava com a mancha de sangue no carpete? A arma não era falsa e alguém morreu na brincadeira. No outro universo, o estranho ser bestial escreveu o mito fundador do mundo embasado neste devaneio anedótico. O homem mastiga, pelo avesso, suas mitologias.

Diante de tantos horrores, somos incapazes de escolher qual nosso pior pesadelo favorito. Nosso esquecer é controverso: semelhante às ondas do mar impelidas pelo vento. A úlcera existencial cresce, inflama como um sorriso, pigmenta com tons arroxeados as brumas da memória.

Os cupins continuam deteriorando a mesa, as linhas do irreal nos transpassam sem anestesia. Agulhas abrem caminhos com uma força descomunal; criando um retalho de sentimentos porosos na carne. De súbito, o som dos acordes nos levanta, refratando o iluminado, o sol dança em frenesi na dádiva das sombras. Após sitiar a cidade da arte, apreciamos o acúmulo de despojos nos porões do navio fantasma.

No horizonte, restam apenas cinzas e um cheiro forte de enxofre dos canhões. Fugimos sem nos importar, arremessando moedas no oceano inconsciente. Ordenando ao timoneiro cobiçoso: rodopie o leme do pesadelo rumo ao infinito. Essa parte maldita, que não cessa em escrever aquilo que já foi dito.

Daniel César, Natal - 07/03/2020.

D César
Enviado por D César em 07/03/2020
Código do texto: T6882651
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.